Estamos perdendo uma ótima oportunidade de aprofundar o debate sobre a cultura como política pública e a função do Estado. Seguimos chafurdando no baixo nível do debate e, em vez de entrarmos no campo iluminista da filosofia política, nos limitamos a uma querela sobre quem tem mais poder de mídia: políticos responsáveis pelo reequilíbrio das finanças públicas ou a trupe barulhenta dos artistas inserida na mídia de entretenimento. Pipocam nas redes sociais balanços sobre o que e quem finalmente tem sido financiado pela renúncia fiscal da Lei Rouanet: se os partidários do governo afastado, com projetos politicamente engajados, se cultura efetiva ou simples entretenimento. Mas o debate não avança nem se qualifica. Os políticos do novo governo recuam e regredimos à política do acochambramento.
Valho-me outra vez de meu mestre Mario Guerreiro. Outro filósofo que precisa ser lido no Brasil, embora menos conhecido, porque não escreve para grandes jornais como no caso do Luiz Felipe Pondé, a que me referi aqui numa coluna recente. Pois, como circula nas redes sociais, sobretudo entre grupos de cidadãos-membros de organizações e movimentos da sociedade civil de participação cívica e política, o Brasil tem de ser lido e entendido na dimensão maior de sua cultura, mais até do que se tem produzido no campo de sua interpretação. O que demanda uma nova estratégia de divulgação, missão de nosso Instituto A Voz do Cidadão. Para superarmos essa miséria do debate público, principalmente sobre produção culturalstricto sensu, e alcançarmos a alta cultura dos cidadãos mais atuantes nos campos das políticas públicas, do combate à corrupção e à impunidade, e dos defensores das causas da cidadania política, pela transparência pública, pelo monitoramento de mandatos políticos, de orçamentos e instituições públicas, os quais nosso instituto acompanha mais de perto.
Pois bem, Mario A.L. Guerreiro, doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi meu orientador no mestrado que cursei nos anos 1980, e devo a ele minha formação nos campos da filosofia da cultura, da arte e da teoria política. Mas já naquela época, entre duas dezenas de doutores e mestres do IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, apenas dois membros do corpo docente não eram de orientação socialista ou social-democrata, mas de orientação liberal e conservadora. O que dá bem a ideia da revolução cultural promovida pelas esquerdas mais esclarecidas do pós-guerra, mas que, no Brasil, acabou se reduzindo na prática a um esquerdismo infantil, sobretudo entre os formadores de opinião da imprensa e os formadores de consciências do sistema educacional. Como receitava a cartilha gramsciana, o enfrentamento revolucionário armado, de eficácia duvidosa naqueles tempos de Guerra Fria, deveria ser substituído pelo combate no campo das ideias pela ocupação dos aparelhos ideológicos do Estado, como a academia, as universidades e escolas, a Justiça, a imprensa, as artes e entretenimento e até as igrejas.
Nas últimas décadas, Mario Guerreiro, escreveu cerca de 20 obras de reflexão filosófica extremamente oportunas nestes tempos de hegemonia esquerdista do pensamento brasileiro no campo da produção da cultura. A maioria delas foi publicada por editoras de universidades e institutos liberais com tiragem reduzida e eventualmente esgotadas, além de tantas outras inéditas. Dentre estas, destacaria uma que ele me enviou recentemente e a que passo a me referir agora: A superação da imaturidade, de Francis Bacon à Revolução Americana: uma nova visão do Iluminismo. Entre suas obras editadas que recomendo aos estudiosos da filosofia política e da cultura brasileira, e que, se não forem encontradas em sebos na internet, podem ser solicitadas a ele em suas versões digitais, estão:Ética mínima (IL, 1995); Liberdade e igualdade (EdiPUCRS, 2002) eIntérpretes do Brasil (Artes e Ofícios, 2004). Mas a lista completa de suas obras, os interessados podem também acessar no seu currículo Lattes. Quanto à obra inédita, é de uma oportunidade singular diante do momento de derrocada do principal partido de esquerda brasileiro, apeado do poder por um contingente de cidadãos insatisfeitos – pela ação das instituições de defesa do Estado e pela ação da maioria dos políticos de perfil de centro, conservador e liberal, preponderantes no Brasil, contrários às políticas esquerdistas e às práticas de corrupção sistêmica com objetivo de se perpetuar no poder –, além de responsável por políticas afirmativas em detrimento da racionalidade econômica e do equilíbrio fiscal, que resultou na maior crise moral, política, econômica e social da democracia brasileira.
No livro em questão, Mario Guerreiro localiza na Revolução Francesa a derrocada da racionalidade do debate político e econômico que havia alcançado seu auge na Revolução Gloriosa de um século antes, na Inglaterra. Se esta promoveu os valores da democracia e aperfeiçoou instituições políticas modernas a partir da Revolução Americana, a Revolução Francesa promoveu o Terror e uma concepção de tomada de poder pela ação armada que se estendeu até a Revolução Comunista de 1917. Dispensável dizer que o debate público brasileiro pende muito mais para a doutrina romântica da filosofia política francesa do que para a tradição racionalista do Iluminismo escocês que inspirou a Revolução Americana. Entre Francis Bacon, Hobbes, Locke e Adam Smith e autores como Rousseau, Proudhon, Hegel e Marx, somos muito mais influenciados por estes últimos da tradição do Siècle des Lumières do que pelos primeiros da tradição do The Enlightenment. Quando sabemos que a clássica tradição racionalista das teorias políticas se perde exatamente no romantismo revolucionário! E um dos marcos determinantes desta perda é a tentação de conceber o homem como senhor de seu destino. Arrogante revolta, por sua vez, contra os valores morais da tradição humanista, fundada na lenda do castigo eterno de Prometeu da mitologia grega e, da tradição religiosa judaica, na genealogia adâmica do pecado original inscrito na lei mosaísta. O que vai ressurgir nos primórdios do Iluminismo com as concepções da Utopia, de Thomas Morus, com a própria Nova Atlântida, de Bacon e a Cidade do sol, de Campanella. E resultar na ideia de progresso, expressão moderna da arrogância romântica do homem como engenheiro social, além de senhor de seu destino. Se a Revolução Gloriosa produz o Bill of Rights, a Revolução de 1789 acaba com o despotismo autocrático dos Bourbons, mas produz o despotismo autocrático dos jacobinos e de Robespierre. Do mesmo modo, a Revolução de 1917 acaba com o despotismo autocrático dos Romanovs, mas produz o despotismo autocrático do Comitê Central do Partido Comunista fantasiado de “ditadura do proletariado”.
O que Mario Guerreiro enfatiza com a comparação entre as duas tradições políticas e suas decorrentes revoluções é que elas podem acabar com formas despóticas de governo, mas não com inadequados modos de pensar. Para acabar com estes, o que é exigido não é revolução, mas sim educação; não é coerção legal, mas sim eficiente persuasão. O que eu chamaria aqui de educação pela comunicação. Uma vez que, por educação, não devemos entender somente a estrita transmissão de conhecimento, mas, sobretudo, a formação do caráter e do espírito cívico dos indivíduos, a conscientização acerca dos seus direitos e deveres, a transmissão de valores morais, enfim, e tudo quanto for exigido para o exercício responsável da cidadania. E lembra Mario Guerreiro de Voltaire que, ao comparar o que se passava de um lado e de outro do Canal da Mancha, dizia: “Na França, o rei é forte, mas o trono é fraco; na Inglaterra, o rei é fraco, mas o trono é forte”.
Embora o Império brasileiro frequentasse ambas as margens do Mancha, nossa República positivista preferiu a margem direita para fazer sua cabeça. Deu no que deu. O Estado pode tudo. Os políticos quase tudo. Os artistas jogam pra plateia. E os cidadãos pagam a conta.
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