terça-feira, 6 de outubro de 2015

A Inteligência da vida


Gun Semin, 71 anos, é um psicólogo turco que estudou na Alemanha e no Reino Unido, trabalhou na Holanda, e atualmente vive em Lisboa, dirigindo um centro de investigações que se ocupa, entre outros temas, da transmissão de sentimentos através do suor. Ao que parece, o suor de pessoas felizes contagia quem quer que o respire. Também a tristeza, a cólera, o medo, todos esses sentimentos se podem transmitir a outros, sem necessidade de palavras ou gestos, simplesmente através de delicados (e eventualmente mal cheirosos), processos químicos. Semin fala disso numa recente entrevista a um jornal português, explicando, com algum detalhe, todo o mecanismo da pesquisa que dirige.

Nada disso constitui novidade. A novidade é que talvez essas formas de comunicação sejam mais importantes do que imaginamos.

A entrevista de Gun Semin foi publicada mais ou menos na mesma altura em que a Nasa divulgou, numa concorrida conferência de imprensa, uma série de fotografias e outras evidências que confirmam não só a presença de água em Marte, mas também que a mesma ocorre em estado líquido, deslizando, nos meses de verão, pelas altas montanhas do planeta vermelho. Como seria de esperar, os cientistas da Nasa foram confrontados, logo a seguir, com a estafada questão da existência de vida em Marte. Sim, disseram, existindo água em estado líquido é provável que exista vida. Pergunta seguinte: e existindo vida, pode existir vida inteligente?

Esta sempre me pareceu uma questão equivocada. Em primeiro lugar, teríamos de discutir a que nos referimos quando falamos em vida inteligente. Imaginemos um pé de ipê, um abacateiro, um baobá, para referir apenas três espécies de árvores que eu amo muito. Todas elas me parecem formas de vida incrivelmente inteligentes. Alimentam-se de água, de luz e de terra. Não matam para se alimentarem. Desenvolveram habilidosos e generosos mecanismos de disseminação, os frutos, sem precisarem se locomover. Além disso, são capazes de comunicar através de complexos processos químicos — semelhantes aos estudados por Gun Semin — não apenas umas com as outras, mas inclusive com diferentes formas de vida, como as abelhas. “Vida inteligente” parece-me uma redundância. Toda a vida é inteligente. A inteligência é uma das propriedades da vida.

Por outro lado, se mal conseguimos compreender como comunicamos entre nós; se não somos capazes de nos comunicarmos com as diferentes formas de vida que nos cercam e com as quais convivemos desde sempre — se não conseguimos conversar com um abacateiro, por exemplo — como diabo conseguiremos bater um papo com um marciano?

A comunicação não se esgota na palavra. A partir do momento em que formos capazes de decifrar outras formas de transmissão de informação, como a que Gun Semin estuda, estaremos talvez mais aptos para iniciar os diálogos de que falo atrás. Conhecem-se, desde há séculos, experiências de comunicação com espécies diferentes, sobretudo com aquelas que nos estão mais próximas, e que consideramos “inteligentes”, ou seja, que se servem de uma inteligência semelhante à nossa, como os primatas ou os golfinhos. Contudo, mesmo essas experiências passavam, até há poucos anos, por forçar essas outras espécies a servirem-se das nossas formas de comunicação. A famosa gorila Koko recorre a mais de mil sinais da língua gestual americana para comunicar com os seus tratadores. As imagens de Koko chorando, ao receber a notícia da morte de Robin Williams, de quem era amiga, comoveram o mundo.

Aprendi em criança que “o homem é o único animal que se serve de instrumentos”. Já nessa altura, contudo, se conheciam inúmeros exemplos de animais que se serviam de instrumentos. Também aprendi que “o homem é o único animal que constrói artefatos complexos”, até que começamos a perceber a maravilhosa complexidade e inteligência das colmeias ou dos morros de cupins. “O homem é o único animal que tem consciência de si”, dizia-se, e experiências recentes demonstraram que não. À medida que o nosso conhecimento sobre as outras espécies progride vamos percebendo que aquilo que achávamos ser algo exclusivo da nossa “inteligência” é, afinal, comum a muitas outras formas de vida.

Teremos primeiro de abandonar a nossa arrogância fundamental para, finalmente, começarmos a dialogar com a vida. Não com a “vida inteligente”, mas com a “inteligência da vida”. Descobriremos talvez, nessa altura, que os marcianos já se encontram entre nós há muito tempo. Simplesmente não estávamos a olhar para eles. Durante todo esse tempo, mesmo com os olhos voltados para as estrelas, não temos feito outra coisa senão olhar para nós próprios.

José Eduardo Agualusa

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