O Poder, atolado, renova-se sem sair do lugar. É escravo da máquina burocrática que se instalou há séculos, alimentada pela corrupção. O cidadão iludido por um sistema político ineficaz desconfia de ações de um governo que assaca, acua. Não sabe mais se está sendo acolhido ou achacado. E é incapaz de reverter os motores.
Em 1.º de janeiro de 1999, tivemos que ir às pressas atrás de um kit de primeiros socorros, valor médio de R$ 10, estojo fajuto com dois rolos de atadura, tesoura com ponta arredondada, dois pares de luvas de procedimento, esparadrapo, dois pacotes de gaze e bandagem de algodão, que, pelo artigo 122, se tornara obrigatório na aprovação do Código de Trânsito Brasileiro. Multa de R$ 115 e mais cinco pontos no prontuário do motorista flagrado sem o kit.
Meses depois, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei prevendo o fim da sua obrigatoriedade, que podia causar sérios prejuízos se usado inadequadamente. Tarde demais: ela movimentara um comércio de cerca de R$ 270 milhões.
“A única razão da existência do kit é fomentar o lucro dos fabricantes dos materiais e equipamentos e dos revendedores. Os motoristas e a população nada têm a ganhar com a exigência dele”, afirmou o deputado Padre Roque (PT-PR), autor da revogação.
Em janeiro de 2000, passei com toda família o Réveillon da virada do milênio em Angra, num inédito reencontro de irmãos, sobrinhos e cunhados que moram aqui e na Europa, brasileiros e estrangeiros, planejado com antecedência.
A foto com todos de branco foi tirada. A data merecia o encontro histórico. Deu tudo certo. Mas quase terminou em tragédia.
Eu, minha irmã mais velha e meu cunhado voltávamos juntos na minha van adaptada. É um carro feito em 1995 sob medida, com plataforma móvel, porta automática, que um tetraplégico não completo, como eu, consegue dirigir. Tínhamos três opções de caminho: Barra Mansa, Taubaté-Ubatuba e Tamoios.
Meu cunhado a dirigia, enquanto eu papeava com a irmã atrás. Decidimos pela Taubaté-Ubatuba. No pé da Serra, enchemos o tanque de 70 litros e começamos a subi-la, com aroma de gasolina ainda entre nós. É das estradas mais lindas e íngremes que cruzam a Serra do Mar, com poucos pontos de ultrapassagem, que exige perícia e potência do motor. O câmbio automático trabalhava. O seis cilindros rangiam. Até uma fumaça branca começar a entrar pelos dutos de ar. A van parou de funcionar num trecho sem acostamento. Meu cunhado disse: “Não anda mais”. Uma fila de carros se formou atrás.
Um carro nos ultrapassou velozmente, parou numa distância prudente à nossa frente. O passageiro saltou e nos acenou com os braços. Ele está tentando nos dizer algo. Meu cunhado abriu a janela calmamente. “Pulem! Está pegando fogo embaixo do carro!”, gritava.
Consegui orientar didaticamente o meu cunhado: “Coloque o câmbio do PARK, desligue o motor. Pegue o extintor aí na porta, apague o fogo, enquanto opero a plataforma elétrica”.
Ele desceu do carro. Era uma operação cheia de botões, comandos e relês: abrir a porta, estender a plataforma, me encaixar nela e descer. Com o motor ligado, não desceria. Sem bateria, não funcionaria. Consegui. Me afastei do carro seguido pela minha irmã. Vi meu cunhado sob ele. Vi as labaredas. Ele mirava o jato de espuma no fogo. Uma mancha de óleo fluía no asfalto. Estourara a caixa de câmbio. O óleo escorreu pelo cano de escapamento fumegante e pegou fogo. Ele conseguiu apagar antes de o fogo chegar ao tanque de combustível. Seria uma explosão pra lá de Bagdá.
Graças a um equipamento do tamanho de uma berinjela, que se compra em qualquer posto de gasolina por R$ 50, estamos vivos. E mais. Meu carro, que não existe similar nacional, e importei quando o dólar valia R$ 0,80, está comigo até hoje.
Então eu soube que meu anjo da guarda agora é considerado obsoleto. Todos os veículos em circulação no País devem possuir a partir deste mês um novo tipo de extintor, o ABC, capaz de apagar incêndios de uma variedade maior de materiais (em madeira e tecidos, materiais comuns em carros). A medida faz parte da resolução 333 do Conselho Nacional de Trânsito. Chegou a ser derrubada por uma liminar e voltou a vigorar.
Até então, os extintores do tipo BC, como o meu, eram recomendados apenas para materiais como líquidos inflamáveis e equipamentos elétricos. Quem rodar com o extintor fora das especificações está sujeito a multa de R$ 127,69 e a inclusão de cinco pontos na carteira. Os teóricos da conspiração têm todo o direito de dizer: “Aí tem...”.
Tais normas não aparecem da noite pro dia. Técnicos de agências oficiais garantem estudos e pesquisas. Mas sua implantação nos pega sempre de surpresa.
No governo Lula, em duas canetadas, duas normas mudaram regras antigas e devem ter dado muito lucro a alguém ou alguns: a da tomada de três pinos (nada universal) e a reforma ortográfica, que tirou uns hifens de um lugar e colocou em outros, extinguiu uns acentos precisos, como de “pára”, mas deixou outros, obrigando a indústria editorial a se reformular.
Alguns pensaram em quem faturaria com novos adaptadores, que tornaram todas as instalações elétricas obsoletas, e no faturamento de parques gráficos e vendedores de papel.
Anos atrás, fomos obrigados a regular os motores para a inspeção veicular anual, medida ambientalmente justa, mas que está suspensa pela própria Prefeitura. Nesta semana, outra novidade: toda empresa (exceto as cadastradas no Simples) é obrigada a ter certificado digital, o e-CNPJ, que custa em torno de R$ 500, para emitir notas fiscais. Não existe opção de quem não quer ser digital.
É obrigatório, a obrigatoriedade, a partir de tal data, a regra, a norma, tem quê! Um Estado que viveu quase 400 anos sob regras monárquicas, custa a debater seus problemas e conflitos republicanamente com seus cidadãos.
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