Poucos dominaram tão bem a arte de tocar o coração das pessoas com uma escrita leve, mas de significado profundo, quanto o capixaba Rubem Braga. Prova disso é que suas crônicas - gênero efêmero por natureza - reverberaram por gerações.
Das historinhas da coleção Para Gostar de Ler, onde muitos que têm mais ou menos a minha idade se iniciaram nos livros, até textos que há algum tempo faziam muito sucesso circulando em correntes de e-mail, suas colunas publicadas nos jornais e revistas de décadas atrás continuam emocionando e levando a reflexões - embora eu suspeite que, ainda que curtas e objetivas, suas crônicas não caibam mais nos poucos segundos dos TikToks e reels.
Num texto que saiu na revista “Manchete” em 1957, época de ouro em que a imprensa brasileira trazia textos diários de Carlos Drummond, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, entre outros gigantes, Rubem Braga publicou o desejo de ter a inspiração para criar “uma história maravilhosa”.
“Eu queria contar uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse: ‘ai meu Deus, que história mais engraçada!’”, almejou o cronista.
A sensação de bem-estar provocada na leitora (“como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente e vivo”) seria tão grande que ela seria passada adiante num boca-a-boca que chegaria a diversas pessoas enfrentando situações difíceis. O casal em crise, as prostitutas detidas na delegacia, enfermos em hospitais, familiares enlutados, solitários de todas as naturezas: todos deixariam suas agruras de lado por alguns instantes para se divertir com um causo gracioso, irresistível e colorido.
A onda de bem-estar gerada pelas palavras imaginadas por Rubem Braga então ganharia o mundo, a ponto de as pessoas perderem a referência de quem a escreveu. E ela seria contada e recontada das mais variadas formas, e independentemente da língua, a história maravilhosa manteria seu encanto, sua frescura e sua pureza.
O fim de ano vem aí e a gente fica mais melancólico. Antes de o Natal e o Ano Novo aparecerem para renovar nossas esperanças com um Brasil e um mundo melhores (começando por nós mesmos, claro), chega a terrível hora dos balanços, da “retrospectiva 2024”.
Eu me lembrei da crônica “Uma História Maravilhosa” (republicada com o título de “Meu Ideal Seria Escrever...” na coletânea As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, organizada por Joaquim Ferreira dos Santos) nesta semana, ao vagar num momento de procrastinação por mensagens antigas de WhatsApp e me deparar com o convite da querida Maria Cristina Fernandes para ser colunista do Valor. Lá se vão seis anos, e eu recordei o frio na barriga que me deu ao dizer “sim” para essa loucura que é tentar ser um cronista dos fatos econômicos e políticos do Brasil - sem, obviamente, ter o talento e a arte de um Rubem Braga.
Nestes dias de melancolia e reflexão com o fim do ano que se aproxima, bateu aqui uma ponta de desesperança com o Brasil. Ao pensar nas reações a propostas voltadas para o bem-comum, em detrimento dos interesses de alguns poucos, o texto de Rubem Braga me veio à mente para me dar forças e não desistir dessa tarefa inglória de refletir semanalmente sobre os problemas do nosso país.
Parafraseando o autor de Cachoeiro do Itapemirim, eu queria contar uma história tão persuasiva que convenceria os empresários brasileiros que o bem-estar de seus empregados e colaboradores é tão ou mais importante do que seus lucros, e que é possível pensar em novos arranjos de trabalho que resultem em maior produtividade, e não em prejuízos.
Meu ideal seria escrever uma coluna tão repleta de dados que forçassem deputados e senadores a admitir que o modelo de emendas parlamentares não traz melhorias para a população, e acabam em desvios de recursos e obras eleitoreiras.
Eu queria redigir uma coluna com argumentos tão poderosos que levassem juízes, promotores, procuradores, fiscais e outras carreiras da elite do funcionalismo a se despir dos argumentos de autoridade, reconhecendo que são servidores do público e que ganhar menos do que o teto é mais do que adequado à sua contribuição pessoal à sociedade.
Meu sonho seria compor um texto forte o suficiente para que a autodeclarada “classe média” aceitasse que lucros, dividendos, aluguéis, rendimentos de aplicações financeiras, doações recebidas e afins são todas formas de renda, e como tal deveriam ser tributados com alíquotas calibradas ao seu necessário compromisso com um país menos desigual.
E que o governo finalmente entendesse que cortar benefícios fiscais e revisar gastos é o único caminho para tirar da retórica o desejo de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Apesar de tantas coisas belas e profundas que escreveu, Rubem Braga nunca conseguiu escrever sua “história maravilhosa” - embora nunca tenha perdido de vista a moça doente da casa cinzenta do interior. Que neste dezembro de balanços e renovação de esperanças, também não esqueçamos de lembrar dela nas posições que tomamos sobre os assuntos em pauta no Brasil.
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