Será necessário, além de julgar com presteza e sentido de urgência e de punir com o rigor da lei aqueles que atuaram na trama golpista, atuar para descontaminar permanentemente esses órgãos de Estado, sobretudo as Forças Armadas e, dentro delas, o Exército Brasileiro dos muitos desvios comprovados pelo inquérito.
Alguns desses vícios não são novos, mas foram ressuscitados por Bolsonaro de forma sistemática e bem anterior a sua própria eleição. Tudo começou com a atuação do ex-capitão — patente, aliás, que só obteve como espécie de prêmio de consolação incompreensível depois de seu afastamento do Exército justamente por tentar promover uma sublevação — como uma espécie de líder sindical das famílias militares no tempo em que foi deputado do baixo clero.
Isso fez com que o desprezo que havia em relação a Bolsonaro nas hostes militares desse lugar a alguma condescendência. Aquele parlamentar radical e, para alguns, folclórico se tornou útil para defender os interesses corporativos dos fardados. Foi a partir dessa pequena fresta que ele foi retomando acesso aos militares mais graduados para, pegando carona em episódios como o mensalão e a Lava-Jato, convencer generais (primeiro os da reserva) e também as tropas de que seria alternativa à corrupção, hábil e sistematicamente associada ao PT e a Lula.
Os ecos dessa pregação, que teve forte impacto nas redes sociais, sobretudo, na origem, nos grupos do Facebook, aparecem nas conversas, nas trocas de mensagem e na forma de articulação dos golpistas de 2022, sobretudo na ala mais radicalizada deles, formada pelos integrantes das forças especiais, conhecidos como “kids pretos”.
Esse tipo de lavagem cerebral, que ninguém se engane, não foi estancado com a troca da guarda no poder nem com as investigações do 8 de Janeiro e do golpismo pré-posse de Lula. Continua acontecendo, de forma talvez mais sub-reptícia, nos aplicativos de trocas de mensagens, em redes sociais como o X e nas conversas de caserna.
A própria conclusão do inquérito, apontando e prendendo integrantes do Exército de diferentes patentes, é munição para o discurso de que o Supremo Tribunal Federal e o governo Lula promovem uma caça às bruxas aos militares, com execração e humilhação públicas. A prisão de um general tem forte impacto no etos militar.
O estilo conciliador do ministro da Defesa, José Mucio, não é unanimidade no entorno de Lula e no coração do PT. Estes gostariam que ao 8 de Janeiro já tivesse se seguido uma ação mais contundente para investigar, punir e afastar os envolvidos nos atos daquele dia e nas maquinações que o antecederam.
No entanto não há dúvida de que foi graças à capacidade de agir como um algodão entre coturnos de Mucio que não se seguiu uma crise maior com quartéis, à época ainda tomados pelo discurso de que as eleições vencidas por Lula haviam sido fraudadas. Passados dois anos, os sinais desse inconformismo são menos nítidos, mas dizer que o golpismo foi extirpado do ecossistema militar seria não só precipitado, mas um erro grave, que pode levar episódios similares a ocorrer num intervalo de tempo curto.
As eleições dos Estados Unidos mostraram a baixa preocupação do eleitorado com a tentativa de abolição da democracia. Donald Trump não só foi eleito para um novo mandato, como foi chancelada sua plataforma de usar o Estado para reverter investigações contra si.
É esse o caráter duradouro da depredação da democracia à século XXI. Combater esse quadro leva bem mais que dois anos e requer um trabalho mais sistemático de recomposição do tecido republicano do que apenas punir os envolvidos em episódios específicos, como o atual.
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