quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A guerra também é isto

Quando falamos em tráfico de seres humanos, vêm-nos à memória imagens terrificas de situações degradantes, de tortura ou até mesmo de morte.

Essa é, infelizmente, uma realidade cada vez mais frequente e disseminada, fazendo jus ao facto de se tratar do mais rentável dos crimes organizados.

Associamo-lo, na sua esmagadora maioria, com o fenómeno migratório que aumenta a cada dia que passa e a cada conflito que se espoleta.


No entanto, esta é uma visão ocidental, altamente direcionada de acordo com os seus interesses e temores. Estamos demasiado preocupados (e com razão!) com os conflitos no Médio Oriente e entre a Rússia e a Ucrânia, para nos preocuparmos com o que se passa no continente africano cujos países se guerreiam, fratricidamente, há décadas.

Em rigor o Ocidente está pouco interessado no que se passa no Sudão, na Serra Leoa ou na República Democrática do Congo, para falarmos apenas nos mais evidentes. São guerras que não nos afetarão e como tal fazemos de conta que não existem.

Mas elas são o combustível de muita da indústria do armamento e, paralelamente, de muito do comércio de vidas humanas.

Empurrados para fora das suas áreas originais, populações inteiras deambulam sem rumo e sem futuro. Alguns, os mais (?) afortunados conseguem o suficiente para fazerem a longa viagem até Marrocos ou Argélia, ficando às portas duma Europa que (por muito má que nos pareça) é, para quem não tem nem esperança, um oásis de paz e prosperidade.

Vêm de qualquer forma, em qualquer condição. O único direito humano que conhecem não chega sequer a ser um direito, é o instinto e resume-se à sobrevivência mesmo que degradante.

África, continua pois, a ser um dos continentes mais explorado, numa nova escravatura que reveste inúmeras facetas mas que tem sempre a mesma génese: a exploração do ser humano pelo seu semelhante.

Durante algum tempo, falou-se muito sobre a situação vivida na agricultura em Portugal assente na exploração mais hedionda, sobretudo sobre a população hindustânica.

Falou-se e depois calou-se. O que mudou? Que aconteceu a quem traficava e explorava estes trabalhadores? E a eles, que sucedeu?

Lembro bem que, questionado sobre as condições em que viviam, um destes homens perguntou, cândida mas preocupadamente, quem lhe pagaria o pouco a que estava habituado, dali em diante. Onde ficaria a dormir, que seria dele? Presumo que tenha ficado sem resposta. Provavelmente terá encontrado ouro explorador ou, na melhor das hipóteses, terá regressado ao seu país natal.

A agulheta da nossa atenção foi mudada para outros acontecimentos, outras realidades e, para trás, ficou este drama, que é apenas a ponta do iceberg.

Se a agricultura é o terreno da exploração de cidadãos vindos sobretudo da Índia, Nepal e Bangladesh, África oferece a mesma mão de obra escrava a grandes e pequenas empresas de construção civil.

Quando questionados, muitos destes cidadãos não sabem sequer o nome da cidade onde se encontram!

Mas, mais camuflado e por isso mesmo menos visível, é o drama dos menores que são aliciados com a promessa dum futuro brilhante ao estilo Ronaldo, no mundo do futebol.

Neste caso, os “olheiros” agem de diversas formas de acordo com a origem e condição destes jovens.

Situações há em que os próprios jovens ou alguém por eles pagam um montante definido, por forma a assegurarem a viagem e a estadia até encontrarem um clube que os aceite. São sobretudo menores vindos de países com algumas dificuldades, mas originários de famílias com um certo poder de compra.

No caso de África, o modus operandi é diferente. Os jovens são aliciados com a promessa do sucesso na ponta do pé e depois, a fim de pagarem a enorme dívida com que ficam para com quem os trouxe ao El Dorado, acabam por trabalhar de dia em empresas arranjadas pelos próprios “olheiros” e, ainda sonhando, treinar longas horas à noite.

Estas situações, que envolvem jovens, são duplamente censuráveis e penalizáveis, pelo menos de forma moral.

Com efeito, para além da exploração laboral a que são expostos, é-lhes retirado o direito, que assumimos como inalienável, a uma educação e a uma infância/juventude.

Estes menores, rapazes na sua maioria, ficam presos a uma miragem cada dia mais longínqua, remetendo-se ao silêncio , calando explorações de todo o tipo a que são sujeitos.

Com idades entre os 14 e os 18 anos, vivem sozinhos em casas sem condições, aos dez e mais, perdidos num país que apenas conhecem dos grandes nomes do futebol, sujeitando-se a tudo enquanto esperam.

E assim, desta forma “limpa”, vamos convivendo com situações de conflito, de extrema desigualdade, prolongando-as no tempo.

Não é verdade que não existam soluções para este flagelo. O que não existe é coragem nem vontade para acabar com ele.

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