domingo, 20 de outubro de 2024

Quando o sangue tem nome

A primeira vez que o encontrei terá sido logo após a pandemia, em Barcelona, quando a Friedrich Naumman Foundation me convidou para fazer uma palestra sobre as mulheres na diáspora.

O tema genérico era a forma como os países do Sul encaravam e tratavam a vaga migratória que crescia a cada dia que passava.

O projeto evoluiu e outros momentos foram acontecendo tendo por base sempre uma temática que nos ligava duma forma muito especial dentro do grupo de peritos: os menores que chegavam não acompanhados à Europa e o seu destino, trabalho que nos levou ao seu país natal, Líbano.


Parece ter sido ontem mesmo e já lá vai mais dum ano…

Ibrahim é (até não ter certezas será no presente que o irei mencionar) um cientista social. Daqueles a sério, dos que vão ao terreno, dos que falam com as pessoas, dos que não aceitam ser asséticos, dos que tocam nas pessoas e lhes sorriem, dos que são objetivos, para serem cientistas e empáticos o suficiente para não deixarem de ser totalmente humanos.

Os seus trabalhos, quer em torno das sondagens políticas quer no que à questão da migração dizem respeito, são variados e profundamente fundamentados com números, estatísticas, metodologias, estudos de casos… tudo o que se pede a um académico. Mas por entre a secura dos números vazia que brotasse sempre uma flor para ninguém se esquecesse que se tratava de seres humanos.

Como diz o povo, ao pé dele ninguém consegue estar triste. Ama a vida e não o esconde. Com uma história sempre na ponta da língua (e se tem e sabe histórias e História) anima qualquer reunião formal ou qualquer encontro informal.

Foi ele que me alertou para situação da fronteira síria onde estariam a ser formados meninos soldados à base de kaptagon, a droga sintética fabricada em pequenas aldeias fronteiriças e que confere uma força sobre-humana e uma desinibição animalesca.

A sua voz não era a mesma. Tinha um trago amargo, um vazio emocional que não era dele. Afiançou-me que estava bem e agradeceu-me e à minha família pelo cuidado e preocupação. Pediu-me que não esquecêssemos o Líbano

“ – Acredita, não precisamos de exércitos de máquinas. Já estão a ser criados exércitos de monstros”, dizia-me.

E estabelecíamos estratégias, fazíamos planos, discutíamos como terminar com este horror humano.

Falámos horas sobre o que será destas crianças nascidas e criadas em campos de refugiados, no meio da lei do mais forte.

Falámos e agora este silêncio….

E nem de propósito eis que o telemóvel apita com uma mensagem.

Depois de três dias, um novo assessment sobre o Líbano assinado por Ibrahim Jouharim.

Não consigo descrever o alívio e a alegria de ver aqueles gráficos, aquela análise… O meu amigo estava vivo e foi como se de repente a guerra tivesse acabado.

As novas tecnologias permitiram que o ouvisse e a dor voltou.

A sua voz não era a mesma. Tinha um trago amargo, um vazio emocional que não era dele. Afiançou-me que estava bem e agradeceu-me e à minha família pelo cuidado e preocupação. Pediu-me que não esquecêssemos o Líbano, o belo Líbano.

Como se pudéssemos…

E despedimo-nos com um desanimo. Mútuo.

O sangue derramado naqueles dias de silêncio tinham tido, certamente, um nome para ele. E, quando tal acontece, a guerra torna-se bem mais real.

Yallah a todos os que sofrem uma guerra que tem nomes gravados na dor,

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