segunda-feira, 19 de agosto de 2024

A luta de um quilombo contra a especulação imobiliária

A agricultora Gabriela Sacramento, de 39 anos, deixou de ter medo da fome no início da vida adulta, quando ganhou uma casa do pai em Lauro de Freitas, cidade da zona metropolitana de Salvador, e aprendeu a viver da terra. Morando em uma área entrecortada por rios, além de plantar, Gabriela e a família usavam as águas que corriam no quintal para tomar banho e pescar. Duas décadas depois, esses momentos são apenas memória.

Primeiro, a construção da Via Expressa Contorno de Lauro de Freitas, um empreendimento do governo da Bahia em parceria com a prefeitura municipal e a Concessionária Bahia Norte, dividiu o terreno dela em dois, afastando-a do rio. Em abril deste ano, Gabriela precisou se mudar porque foi ameaçada por denunciar a construção de um bairro planejado no território onde vivia.

A terra pela qual Gabriela luta é o Quilombo Quingoma, considerado um dos mais antigos do Brasil, com atividade registrada desde 1569 e certificado pela Fundação Cultural Palmares desde 2013. Pela Constituição Federal de 1988, a comunidade remanescente deveria ter o direito à propriedade definitiva das terras assegurada, mas o processo de titularização está paralisado desde 2015 no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Enquanto o Estado demora a conceder aos moradores a posse definitiva do terreno, o próprio poder público, junto à iniciativa privada, está fatiando o quilombo. A mais recente disputa envolve a construção do bairro planejado Joanes Parque, um loteamento com unidades a partir de 130 metros quadrados. Segundo uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), o condomínio está sendo erguido dentro de área já reconhecida como sendo do Quingoma em um relatório antropológico aprovado pelo Incra e a comunidade em 2017.
Empresa oferece loteamentos em território quilombola delimitado pelo Incra

Em fevereiro deste ano, o MPF, junto às Defensorias Públicas da União e do Estado (DPUs), emitiu uma recomendação para impedir a construção e comercialização do loteamento. Entretanto, uma publicação no Instagram da empresa MAC Empreendimentos, na última segunda-feira (12/08), afirma que o stand de vendas do loteamento seria inaugurado nesta semana. De acordo com o site da empresa, já foram abertas 50% das ruas. Metade do processo de terraplenagem também já estaria concluído.

"O empreendimento já está bem avançado na questão de supressão de vegetação, ainda que exista essa ação [civil] em curso. Mas como a liminar ainda não foi apreciada [pela Justiça], eles continuam a avançar com a construção", explicou Gabriel Cesar, defensor regional de Direitos Humanos na DPU da Bahia.

O bairro planejado avança porque, embora o estudo antropológico que reconheceu a extensão do território quilombola identifique que a área total do quilombo tem 1.225 hectares, o governo da Bahia tem uma contraproposta de reconhecer 284,76 hectares, o equivalente a 23% do quilombo reconhecido pelo Incra.

O condomínio fica numa área fora dessa segunda metragem, mas dentro da maior, equivalente 1,7 mil campos de futebol.


Segundo documentos da ação civil pública à qual a DW teve acesso, a MAC Empreendimentos alegou que mantém a propriedade das terras onde está sendo construído o condomínio, e que tem as licenças ambientais municipais para implementar o loteamento.

Em e-mail, a MAC Empreendimentos afirmou que atua "regularmente com todas as licenças necessárias, obedecendo todas as leis e que não nos encontramos em território quilombola". A empresa enviou à reportagem uma decisão da Justiça do dia 22 de julho, no qual foi decidido pela abstenção de obras ou serviços apenas no perímetro proposto pelo governo e não na área total reivindicada pelos quilombolas.

A prefeitura de Lauro de Freitas afirma que vem se abstendo de conceder licenciamentos e alvarás para construir na área da proposta do governo, como determinado pelo judiciário. Em nota, diz ainda que o empreendimento está fora desse perímetro.

A empresa alega que já investiu cerca de R$ 5 milhões na área, entre impostos e obras. Porém, segundo o MPF e as defensorias, a MAC tem direito no máximo a indenizações, já que a propriedade dos remanescentes de quilombos é um direito constitucional e inalienável.

A questão é que, se os imóveis forem construídos, o estado terá que pagar uma indenização maior. "Entendemos que esse empreendimento não pode avançar, pois essa área possivelmente será reconhecida como um território quilombola. Não faz sentido liberar a construção", acrescenta Gabriel Cesar.

Mesmo que as casas ainda não estejam construídas, o empreendimento já causou impacto na vida dos quilombolas – foram derrubados cerca de cinco quilômetros de mata, comprometendo as áreas de plantio. Animais silvestres como cobras e tatus estão sendo encontrados dentro ou próximos das casas. A comunidade denunciou o caso à Secretaria de Meio Ambiente e à ouvidoria da cidade, pois o local é uma Área de Proteção Ambiental (APA).

"Desde 1569 a gente vem fazendo a proteção desses espaços, mas hoje a gente está sendo invadido. A gente não pode nem usufruir de uma mata sagrada para fazer nossos ritos", lamenta Rejane Rodrigues, 39 anos, pedagoga e líder do Quilombo Quingoma, que tem atualmente cerca de 4,5 mil moradores, distribuídos em 650 famílias e mil casas.

Uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF) de 2021 determina que, independentemente da fase do processo de certificação ou titulação, as comunidades tradicionais não podem ser penalizadas ou privadas dos seus direitos pela demora do estado. Em abril, o MPF solicitou que a União, o Incra, o Governo da Bahia, o município de Lauro de Freitas e a MAC Empreendimentos fossem condenados a pagar uma indenização por dano moral coletivo e dano existencial aos quilombolas do Quingoma no valor de R$ 5 milhões.

O Incra reconheceu em nota que o Quingoma é um caso singular, pois envolve o avanço da urbanização em direção à área da comunidade, com empreendimentos públicos e privados ocupando parcialmente o território. O órgão diz que essa situação leva a dificuldades técnicas – não detalhadas – para concluir o processo, e afirmou ainda que realiza reuniões mensais com a comunidade e outras entidades do Estado da Bahia, para articular soluções.

A construção do bairro planejado é apenas a última batalha enfrentada pelos quilombolas de Quingoma. A primeira delas aconteceu com a construção da Via Expressa, inaugurada em 2018 para desafogar o trânsito entre a capital e o Litoral Norte baiano. A estrada gera transtornos até hoje à comunidade. Na época da construção, alguns moradores precisaram ser indenizados por perder seus imóveis. Agora, alguns deles precisam pagar pedágio.

Ambas as situações aconteceram com Gabriela Sacramento. A via deixou o rio e o poço artesiano de onde pegava água de um lado, e o espaço para a nova casa do outro. O imóvel, que antes era de alvenaria, hoje é um contêiner. "Eles colocavam dinamites para explodir, então era impossível construir uma casa. Agora, eu também dependo da água do meu vizinho, o que torna mais difícil a plantação", diz.

Gabriela paga pedágio para ir ao hospital onde ela e o filho realizam tratamento oncológico e para chegar à sede da Associação Agrícola Novo Horizonte, da qual é presidente. Em maio deste ano, a tarifa básica para carros aumentou de R$ 6,30 para R$ 7.

A Via Metropolitana começou a ser planejada em 2008 e, desde essa época, os moradores do Quingoma passaram a receber demandas judiciais pela reintegração de posse. Além da pressão, sofreram casos de incêndio de casas, agressões físicas e viram funcionários de construtoras entrar no território sem autorização para realizar estudos de topografia.

"Há no Brasil um processo histórico de apagamento dos direitos das populações subalternizadas, que geralmente são pretos e pobres. E com o Quingoma não é diferente", diz o pesquisador Fabio Macedo Velame, líder do grupo de pesquisa EtniCidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA). De acordo com ele, a rodovia faz parte de um planejamento regional e municipal de expansão urbana e criação de novos bairros.

Em nota, a Concessionária Bahia Norte afirmou que todas as intervenções estruturais necessárias à implantação das praças de pedágios nas rodovias "ocorreram respeitando os trâmites legais para a obtenção das licenças previstas no contrato de concessão". Além disso, a gestora diz manter diálogo com as comunidades quilombolas "para a preservação do patrimônio material e imaterial das áreas associadas às rodovias".

Sobre o pedágio, a Bahia Norte disse que "as isenções de pedágios em rodovias sob sua gestão são previstas em contrato de concessão e deferidas exclusivamente pelo Governo do Estado da Bahia".

Disputas constantes pela posse de terras geram insegurança nas áreas ocupadas pelas comunidades quilombolas. Segundo a DPU na Bahia, desde abril desse ano, os conflitos na área do Quingoma se agravaram, e três lideranças do quilombo foram ameaçadas de morte.

Gabriela e Rejane foram incluídas no Programa de Proteção ao Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) e estão vivendo fora da comunidade há cerca de quatro meses, enquanto outra liderança, uma idosa, vive sem poder sair de casa dentro do território.

Todas temem ter o mesmo destino de Mãe Bernadete, ialorixá do quilombo Pitanga dos Palmares, também na região metropolitana de Salvador. Ela foi assassinada há um ano, no dia 17 de agosto de 2023. Líder da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e liderança local, Mãe Bernadete também estava no programa de proteção, o que não a impediu de ser morta com 25 tiros. Em 2017, o filho dela já havia sido assassinado. A Polícia Civil concluiu que Bernadete foi morta após entrar em conflito com o tráfico de drogas no território.

Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia tem a maior população quilombola do país, com 30%. O percentual equivale a 397 mil pessoas em 944 comunidades. Mas apenas 5,2% dos quilombolas na Bahia vivem em territórios titulados. O Incra tem atualmente 1,8 mil processos de titulação abertos.

De acordo com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, responsável pela execução do programa de proteção, há 16 lideranças quilombolas ameaçadas e protegidas no estado atualmente. Ao todo, há 133 defensores inseridos no PPDDH na Bahia.

Longe do que considera o seu local de origem, Gabriela passou a ter dificuldades para dormir e hoje precisa de medicamentos para induzir o sono. "Eu vivo praticamente presa, escondida. Tenho a sensação de que estou sendo perseguida", conta ela.

Mesmo inseridas no programa, Rejane e Gabriela dizem que não se sentem protegidas. A DPU solicitou melhorias no programa à secretaria de Justiça e Direitos Humanos. "O programa não é feito para tirar as pessoas do território, mas muitas vezes isso não é possível. E quando elas saem, é sempre uma dificuldade de deslocamento e alimentação", diz o defensor Gabriel Cesar.

Em nota, a secretaria afirmou que o programa está sendo remodelado em todo o Brasil. Na Bahia, o órgão afirma que triplicou o orçamento destinado à proteção e criou um Grupo de Trabalho intergovernamental para regularização de conflitos fundiários. "Como resultado desses esforços, por exemplo, o Quilombo Pitanga dos Palmares já está em fase final de demarcação de terra", diz a nota.

Enquanto não voltam para casa, Rejane e Gabriela tentam lutar à distância para que novos empreendimentos não cheguem ao Quingoma. "Eu sei que sair de lá também é uma forma de luta, de resistência, porque se eu ficar, posso ser morta como mãe Bernadete foi", diz Rejane, que acrescenta: "Eu não preciso ser heroína, que herói é solitário, e a luta é coletiva".

Nenhum comentário:

Postar um comentário