quinta-feira, 25 de julho de 2024

A investida contra o devedor contumaz

O fim do recesso legislativo trará à tona nova tentativa de se votar a tipificação do devedor contumaz. Nenhum projeto simboliza melhor a borra que entope o futuro do Brasil. De um lado estão algumas das maiores empresas do país e o Ministério da Fazenda. Do outro, um punhado de empresas que competem por meio da evasão fiscal, parlamentares e dirigentes partidários cooptados.

A resistência a esta tipificação vale-se cada vez mais do poder de barganha dos interessados junto ao Supremo Tribunal Federal. Na defesa de devedores contumazes estão alguns dos maiores escritórios de advocacia do país, alguns dos quais com parentes de ministros e ex-ministros.

A turma da resistência oferece carona ao crime organizado, cada vez mais espraiado na economia, e deixa a pé não apenas políticas públicas desprovidas de bilhões de reais quanto o poder do Estado na garantia de um ambiente de negócios seguro.


Não são inadimplentes ou sonegadores comuns. São contumazes. Quando autuados, passam a operar sucessivamente por outros CNPJs de maneira que nunca deixam de operar. No limite, há os que se valem de mercadoria desviada, depósitos clandestinos, fraudes nas alfândegas, venda fictícia e empresas fantasmas.

A margem de lucro nesse setor é de centavos. O ganho vem pelo volume. Quando uma empresa consegue praticar preços com uma diferença de R$ 1 vira suspeita. Pelo menos um dirigente partidário já foi flagrado como intermediário da venda de uma empresa montada em São Paulo com GLP desviado para um empresário tradicional do setor. Dos 20 milhões de CNPJs existentes no país, apenas 1 mil são de devedores contumazes, que, nas contas da Receita, já deixaram de recolher R$ 200 bilhões.

Ao longo de sete anos, o Senado ergueu uma muralha. Sucessivamente, barrou três projetos. O primeiro foi o projeto da ex-senadora Ana Amélia (PP-RS), de 2017, que atravessou o governo Bolsonaro parado na Comissão de Constituição e Justiça e lá permanece.

Em 2022, o ex-senador Jean Paul Prates (PT-RN) apresentou texto parecido, com o mesmo destino. Ambos têm por relator o senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). No mesmo ano, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente da Casa, apresentou pacote tributário de 10 projetos. Oito foram votados. Entre os dois que restaram está aquele que trata do devedor contumaz. Chegou a ter pedido de urgência, revogado sem que ninguém, nem mesmo o autor - do projeto e da revogação da votação -, se lembre por quê.

O devedor contumaz está em todos os setores da economia, mas a abertura condescendente no monopólio de petróleo fez com que a prática se espraiasse no setor. As distribuidoras se multiplicaram. A autorização de cotas pela agência reguladora (ANP) gerou um cartório.

Grupos que não produziam uma gota de combustível passaram a negociar cotas de distribuição. Parlamentares - que aprovam diretores das agências - passaram a gravitar em torno das máfias de cotas. Em troca, dispõem, no mínimo, de combustível de graça nas eleições. A Lava-Jato não teve esse nome por acaso. Um doleiro dono de posto de gasolina que lavava dinheiro (Alberto Youssef) foi o fio de onde se puxou a operação.

No Amapá do presidente da comissão onde estão parados os projetos sobre devedor contumaz surgiu um corredor de importações que beneficiou, particularmente, o setor de combustíveis. O senador Davi Alcolumbre não comenta.

As empresas importavam o combustível pelo Amapá e - nem todas - pagavam uma tarifa mínima (3%) no Estado. O combustível seguia para outros portos. Ao desembarcar, informavam que o imposto já havia sido recolhido. Só que não.

De novembro do ano passado até maio deste ano, quando o Conselho dos secretários estaduais de Fazenda conseguiu suspender a farra, 14 navios já tinham passado pelo corredor. Nesse período, o Amapá tornou-se o maior importador de diesel russo do país. O prejuízo dos Estados superou R$ 1 bilhão.

Por meio de estreladas bancas de advocacia, alguns desses importadores conseguiram liminares de desembargadores do Paraná e de Tocantins que permitiram o ingresso desse diesel barrado pelo Comsefaz.

O senador Ciro Nogueira (PP-PI) deixou digitais em pelo menos três emendas que apresentou. Uma delas estabelece o Cade, velho feudo do Senado, como instância de arbitragem por entender que a Constituição prevê regimes especiais de tributação para prevenir desequilíbrios concorrenciais.

Nas outras emendas, preserva competidores de setores com “forte influência estatal”, carimbo do setor energético, e estabelece, na tipificação do devedor contumaz, o crivo das agências reguladoras, outro feudo do Senado. O senador não comenta.

Os argumentos são os mesmos usados pela defesa do grupo Refit, do empresário Ricardo Magro. Junto à Copape, de São Paulo, são os dois principais alvos do Instituto Combustível Legal, montado pelas grandes empresas para pressionar pela aprovação do projeto. Ambos se dizem favoráveis à regulamentação. Interlocutores da Refit advogam que Magro foi o primeiro do setor a ser ameaçado pelo crime organizado.

A muralha do Senado levou o governo a se voltar para a Câmara, onde hoje tramita um texto do Executivo com a relatoria de Danilo Forte (União-CE). A chance é maior, pelo entendimento entre a Receita e empresários. As ambições se avolumam para atingir também quem negocia com o crime organizado, mas também há gatos nessa tuba. Ao Valor, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que o texto chegou com uma “subjetividade muito forte”.

Todas as vírgulas são negociadas de olho na lista que a Receita prepara com as empresas que seriam tornadas inaptas no dia seguinte à aprovação, depois que todas as subjetividades tiverem sido superadas.

Num plano B, que pode virar A, os empresários recorreram ao Ministério da Justiça, onde já foram realizadas cinco reuniões para a montagem de operações de cerco aos contumazes. Desde que a Polícia Federal abandone a pauta de uma nota só da caça ao bolsonarismo.

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