Mead explicou que, no reino animal daquela Pré-História, quebrar uma perna equivalia a morrer de fome, sede ou como presa de outros animais, por não ter tido tempo de sarar. Um fêmur sarado significava que alguém havia decidido ajudar o ferido, transportara-o a lugar seguro e permitira que se recuperasse. A conclusão da mestra: a civilização começa quando alguém ajuda outra pessoa que precisa de ajuda.
Nem os biógrafos de Mead nem pesquisadores de sua obra — que inclui uma formidável palestra de 1968 sobre o tema “Quando uma cultura se torna civilização?” — encontraram referência precisa do diálogo entre a antropóloga e um aluno (Data? Local? Contexto? Nome do interlocutor?). Mesmo assim, a história passou a ser adotada como plausível e repetida como saber científico sempre que dele necessitamos, como agora. São tempos de transição, ou “liminalidade”, termo do antropologuês que designa nossa ambiguidade e desorientação durante transformações e rupturas.
Há vezes em que cataclismos naturais ou criados pelo ser humano aceleram a História, revelando o caminho para o qual determinada sociedade já embicava sem saber. Outras vezes, a ocorrência de pragas, pandemias ou guerras altera de forma fundamental a própria trajetória de sociedades. Ainda é cedo para prever o que emergirá das ruínas e devastação humana em Gaza e prematuro imaginar que, da calamidade em curso no Rio Grande do Sul, brote um Brasil visionário, capaz de pensar, agir, prevenir, colaborar, pagar sua cota individual e coletiva de engajamento. Como já disse um sábio, a verdadeira generosidade com o futuro consiste em dar o melhor de si no presente.
Por enquanto, o momento gaúcho ainda é emergencial, de empatia coletiva e afoiteza geral para conseguir atravessar um dia a mais. A destruição no Sul tem sido comparada a um cenário de guerra, então convém apertar os cintos: os períodos do pós-guerra costumam ser lembrados pelos sobreviventes como mais difíceis e amargos que a própria guerra. Explica-se: antes de uma guerra estourar, vigora um sistema e existem regras, não importa se boas ou ruins. Cada um sabe onde mora, faz parte de uma sociedade, conhece os caminhos do sustento. Em tempos de guerra, o sistema colapsa, regras podem ser quebradas na busca de um abrigo ou alimento. O foco está em sobreviver. Quem não consegue, morre antes de poder contar sua história para a História.
David Laderoute, coronel reformado do Exército canadense, descreve assim o que vem depois: “No pós-guerra, o sistema continua quebrado, moradias estão em ruínas, lavouras foram abandonadas, o comércio de alimentos sofre restrições. Mas as regras voltaram — deixou de ser possível e permitido fazer qualquer coisa para poder sobreviver”. O inimigo passa a ser a ausência de instituições em pleno funcionamento, a precariedade na subsistência. Faltam alimento, saúde, escolas, a retomada da vida anterior se revela distante.
Durante a guerra predomina a esperança/certeza de que um dia ela haverá de terminar, ficando para o day after a possibilidade de encararmos os destroços que sobraram. Cansaço, impaciência, desilusão, raiva se infiltram no tecido social diante da dimensão da empreitada. Quase 30 anos depois do fim da guerra na Bósnia, o país ainda não conseguiu descontaminar seu solo de aproximadamente 80 mil minas terrestres. Serve como metáfora.
Assim sendo, melhor acreditar na fábula humanista atribuída a Margaret Mead: “A civilização começa quando uma pessoa ajuda outra que precisa de ajuda”.
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