domingo, 19 de maio de 2024

A ocasião e a maldade

É inegável que a ocasião faz o ladrão, mas não é a única coisa que a ocasião faz.

O argumento da tentação é moralmente duvidoso – não é só por encontrar uma carteira cheia de dinheiro que somos tentados a roubar – mas funciona, porque todos somos capazes de imaginar o ladrão preguiçoso que é incapaz de dar um passo para roubar, mas não resiste quando é Deus Nosso Senhor a pôr-lhe as pérolas da marquesa no caminho.

“Estava mesmo ali à mão de semear” é uma desculpa que põe os juízes de todo o mundo a bocejar. As pessoas que sorriem quando a ouvem, ou quando lêem Oscar Wilde a dizer que resiste a tudo menos à tentação, já acharão menos graça quando é o violador a dizer que a vítima estava de minissaia.


Mas o argumento é sempre o mesmo: um homem não é de ferro e a ocasião é que faz o ladrão, pelo que, no fundo, senhor doutor juiz, a culpa não é só minha!

Na minha vida, tenho-me espantado com pessoas que, não sendo sempre maldosas, são capazes de actos de grande maldade. Se calhar, também elas não resistem à tentação de ser más. A diferença é que não podem ser apanhadas, nem apresentadas a nenhum juiz – precisamente porque só são más quando pressentem que não há maneira de serem castigadas.

Estas maldosas ocasionais são moralmente piores do que as maldosas permanentes, porque estas últimas não têm remédio e é fácil detectá-las e evitá-las.

São más quando têm a faca e o queijo na mão. Não resistem à vertigem da desigualdade. Abusam sempre que o abuso é possível – e indetectável. Isto é, abusam sempre que o abuso não impede que possam continuar toda a vida a abusar.

Diriam estas pessoas, caso pudessem ser chamadas à pedra, que é a ocasião que faz a maldade? Que são como criancinhas, com a crueldade das criancinhas, mas também a inocência?

A verdade é que as ocasiões só despertam o que já lá está. Acontece a mesma coisa com o bem: há muita gente que agradece uma oportunidade de ajudar os outros. A tentação nunca tem culpa.

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