segunda-feira, 15 de abril de 2024

Relatório liga crimes no Cerrado a gigantes da moda europeus

Até chegarem nas vitrines de gigantes como Zara e H&M, calças, bermudas, camisetas e meias de algodão deixam para trás um rastro de desmatamento, grilagem de terras e violação de direitos humanos no Brasil. Para o consumidor, as peças parecem acima de qualquer suspeita: a maioria estampa um selo de produção sustentável.

A denúncia faz parte do relatório Fashion Crimes da organização Earthsight, publicado na quinta-feira. Ao longo de um ano, uma investigação detalhada focou nos negócios que conectam as lavouras do Brasil, quarto maior produtor da commodity no globo, às marcas europeias.

A ONG analisou o caminho percorrido por 816 mil toneladas de algodão com a ajuda de imagens de satélite, registros de envios de mercadoria, arquivos públicos e visitas às regiões produtoras.

Segundo o relatório, essa matéria-prima foi destinada especialmente a oito empresas asiáticas que, entre 2014 e 2023, fabricaram cerca de 250 milhões de itens para as lojas. Muitos deles, alega a investigação, abasteceram marcas como H&M e Zara, entre outras.

"É chocante ver estas ligações entre marcas globais muito reconhecidas, mas que, ao que tudo indica, não se esforçam o suficiente para ter controle sobre estas cadeias de fornecimento, para saber de onde vem o algodão e quais tipos de impacto ele provoca", diz Rubens Carvalho, chefe de Pesquisa sobre Desmatamento da Earthsight, à DW.


O problema, afirma a ONG baseada no Reino Unido, está na origem da matéria-prima. O algodão exportado sai principalmente do oeste da Bahia, região imersa no Cerrado brasileiro muitas vezes desmatado ilegalmente para ampliar o cultivo. Em alta, o corte desta vegetação dobrou nos últimos cinco anos, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Dentre os casos analisados no relatório, está o grupo SLC Agrícola. Fundado em 1977 no Rio Grande do Sul, o grupo diz ser responsável por 11% do algodão brasileiro exportado (safra 2019/2020).

O estudo da Earthsight também diz que, nos últimos 12 anos, estima-se que 40 mil campos de futebol de Cerrado tenham sido destruídos dentro das fazendas do SLC. Em 2020, a empresa, que também planta soja, foi apontada como a maior desmatadora do bioma, calculam pesquisadores do Chain Reaction Research.

Em 2021, o SLC se comprometeu junto a fornecedores com uma política de desmatamento zero. Um ano após a promessa, um relatório da Aidenvironment identificou o corte de 1.365 hectares de Cerrado dentro das propriedades que cultivam algodão, o equivalente a 1.300 campos de futebol. Quase metade estava dentro da reserva legal.

Uma consulta feita pela Earthsight no banco de dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mostra mais de R$ 1,2 milhão de multas aplicadas por infrações ambientais desde 2008 nas fazendas do grupo no oeste da Bahia.

Uma das acionistas da SLC é a britânica Odey Asset Management. Em 2020, em uma entrevista para o diário britânico Financial Times, o fundador da empresa disse que arcar com as penalidades ambientais no Brasil era algo corriqueiro como "pagar multas de trânsito".

Questionado, o grupo afirmou por meio de nota à DW que "todas as conversões de área com vegetação nativa da SLC seguiram os limites estabelecidos por lei". Especificamente sobre a área desmatada em 2022 apontada no relatório da Aidenvironment, a empresa diz que a destruição se deu por "um incêndio natural, não ocasionado para a abertura de novas áreas para produção".

Sobre as multas aplicadas pelo Ibama, a SLC Agrícola diz ter recorrido administrativamente de todas as autuações. "As multas que foram objeto de recurso estão em tramitação e não houve, até o momento, um julgamento definitivo", diz a nota.

Outro grupo analisado em detalhes é o Horita, original do Paraná e atuante na Bahia desde a década de 1980. Dentre as várias denúncias feitas pela Earthsight está a chamada grilagem verde: imposição de reservas legais, ou áreas de preservação de propriedade privada, em zonas onde vivem comunidades tradicionais. A manobra impede que famílias realizem atividades de subsistência e, nos piores casos, permaneçam nas terras.

O conflito fundiário entre as famílias geraizeiras, como se identificam essas comunidades tradicionais na região, e fazendeiros data de 1970. Na década seguinte, a companhia Delfin Rio compra terras e registra o empreendimento como Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do estado (AATR), o grupo Horita é um dos sócios do complexo de fazendas.

Em 2017, as famílias geraizeiras da zona rural de Formosa do Rio Preto, no oeste baiano, ajuizaram uma ação contra a Estrondo por grilagem de terra e ganharam, em caráter liminar, a posse coletiva de 43 mil hectares que o empreendimento dizia ter comprado. A maior parte está no coração da Matopiba, zona de expansão do agronegócio que integra os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, habitada há mais de 200 anos pelos geraizeiros.

Issa Gira, de 67 anos, planta algodão há vários anos em Burkina Faso, mas continua lucrando menos de um dólar por dia. Toda a família tem de ajudá-lo na lavoura, inclusive o garoto da foto. O consumidor final nem toma conhecimento das precárias condições em que vivem essas pessoas.

Após a colheita, os agricultores de Burkina Faso trazem o produto para os postos de coleta na vila mais próxima. Antes disso, uns ajudam os outros a comprimir o algodão em grandes fardos, para pesá-lo. "Ninguém se preocupa com o cultivo, o primeiro elo da cadeia de produção de roupas", adverte o fotógrafo.

Mais de quatro milhões de pessoas trabalham na produção de algodão em Burkina Faso. O algodão é a segunda matéria-prima burquinense mais valiosa, depois do ouro. A Sofitex é uma das três empresas no país que compram o algodão dos agricultores e lhes dá empréstimos. A Sofitex exporta cerca de 540 mil toneladas de algodão por ano. 

"Os subsídios do Ocidente para a produção de algodão levam a dumping nos preços, causando altos prejuízos aos países pobres", afirma Franko. Para ele, a produção de algodão e de roupas nos países pobres é só outra forma de colonialismo. "As pequenas empresas muitas vezes trabalham como contratadas de empresas maiores. O aluguel é caro para os trabalhadores, por isso eles também dormem no local."

Trabalhadoras cortam tecido em uma fábrica em Daca, Bangladesh, coração mundial da indústria têxtil barata, onde elas ganham em média 2,20 euros por dia. Empresas como H&M, Walt Disney e Lidl têm seus produtos fabricados aqui. A região foi manchete em 24 de abril de 2013, quando o prédio Rana Plaza desabou, causando a morte de 1.129 pessoas.

"É difícil falar de condições justas de produção mesmo em marcas caras", diz Franko sobre esta foto, que mostra trabalhadores romenos. "As condições de trabalho nas fábricas de roupas da Romênia são muito melhores que na maioria dos países asiáticos e africanos, mas os salários, de no máximo 200 euros, ainda são extremamente baixos, em certos casos menores que na China. E essa é a União Europeia!".

A indústria da moda passa por uma estagnação em termos de tendências. Por isso, muitas peças de roupa podem ser usadas por mais tempo. Mesmo assim, a cada ano são vendidas mais de 80 bilhões de peças em todo o mundo. A má qualidade e o baixo preço facilitam o descarte. Só nos Estados Unidos surgem a cada ano mais de 15 milhões de toneladas de lixo têxtil.

"O algodão tem uma história obscura, e, na minha opinião, os problemas decorrentes de seu comércio nunca foram resolvidos", lamenta o fotógrafo Jost Franko. Embora se fale muito disso, os consumidores parecem não se preocupar: "Acho que é mais fácil fechar os olhos. Os problemas têm raízes profundas e não são só da indústria têxtil."

Fashion Revolution é um movimento global que exige maior transparência, sustentabilidade e ética na indústria da moda. A semana em que se lembra o desabamento do Rana Plaza em Bangladesh foi declarada Semana da Revolução da Moda, com a campanha #whomademyclothes, em que o consumidor é encorajado a questionar "Quem fez minhas roupas" e exigir maior transparência na cadeia de produção de têxteis.Foto: www.fashionrevolution.org.

Em 2019, a Operação Faroeste da Polícia Federal revelou um conluio do alto escalão do magistrado baiano para favorecer fazendeiros na mesma região. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), um esquema de compra de sentenças teria movimentado cifras bilionárias em disputas de terras e tinha participação de magistrados, empresários, advogados e servidores públicos. Walter Horita, um dos fundadores do grupo, é um dos réus no processo, ainda em julgamento.

Um dos magistrados acusado de vender sentença para grileiros, segundo a Operação Faroeste, atuou na ação que julgava a posse coletiva dos geraizeiros. Segundo a AATR, a liminar a favor das comunidades só passou a ser cumprida após o afastamento e prisão do juiz.

Procurado pela DW, o Grupo Horita declarou nesta quarta-feira que "aguardará a divulgação do relatório para qualquer nova manifestação, para além das que já foram proferidas pelo seu departamento jurídico, em resposta às acusações da ONG".

"Todas as alegações negativas contra o Grupo Horita constantes da Carta da Earthsight, datada de 23/08/2023, como supostos 'achados', não correspondem à verdade", diz um trecho da resposta enviada à ONG.

Durante a investigação, a Earthsight seguiu a rota de 816 mil toneladas de exportações de algodão que saíram da SLC Agrícola e Grupo Horita entre 2014 e 2023 para os principais destinos: China, Vietnã, Indonésia, Turquia, Bangladesh e Paquistão. Com base em dados que permitem rastreio – o que não ocorre no caso chinês –, as pistas levaram a oito fabricantes de roupas na Ásia.

Todas as intermediárias identificadas (PT Kahatex, na Indonésia; Noam Group e Jamuna Group, em Bagladesh; Nisha, Interloop, YBG, Sapphire, Mtmt, no Paquistão) fornecem produtos acabados a marcas como Zara e H&M, segundo aponta a ONG.

"O algodão que associamos aos abusos de direitos à terra e ambientais na Bahia tem certificação Better Cotton. Essa iniciativa falhou em impedir que este algodão chegasse aos consumidores preocupados", afirma o relatório da Earthsight.

Criada em 2009 pela indústria e outras organizações, incluindo a WWF, a iniciativa criou um selo para atestar a origem da matéria-prima no intuito de garantir qualidade e respeito ao meio ambiente. No Brasil, segundo dados da Better Cotton, há 370 fazendas certificadas em parceria com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa).

Em 2018, uma análise feita pela Changing Markets Foundation, organização que visa alinhar mercados a padrões de sustentabilidade com sede na Holanda, sobre certificadoras apontou problemas na Better Cotton. "Em geral, os padrões para o algodão certificado são baixos e aplicam-se apenas ao início da cadeia de abastecimento de algodão. Considerar o certificado uma garantia de sustentabilidade é enganoso", dizia o levantamento.

A Better Cotton, sediada em Genebra, disse à DW que acaba de concluir uma auditoria aprimorada feita por terceiros das fazendas envolvidas e que precisa de tempo para analisar as conclusões e implementar mudanças, caso sejam necessárias. "As questões levantadas [pelo relatório] demonstram a necessidade premente de apoio governamental na abordagem das questões trazidas à luz e na garantia de uma implementação justa e eficaz do Estado de direito", diz o e-mail da iniciativa.

À DW, a H&M afirmou que "as conclusões do relatório são altamente preocupantes" e que encaram a questão com muita seriedade. "Estamos em estreito diálogo com a Better Cotton para acompanhar o resultado da investigação e os próximos passos que serão dados para fortalecer e revisar seu padrão", respondeu a varejista, também por e-mail.

A Zara disse à DW que leva "as acusações contra a Better Cotton extremamente a sério" e exige que a certificadora compartilhe o resultado de sua investigação o mais rápido possível.

"Além disso, solicitamos com urgência as providências tomadas pela Better Cotton para garantir a certificação de algodão sustentável nos mais altos padrões", disse a varejista por meio de nota.

Na quarta-feira, a Inditex, proprietária da Zara, exigiu mais transparência da Better Cotton após anúncio da divulgação do relatório para esta quinta. A Inditex enviou uma carta à iniciativa com data de 8 de abril, pedindo esclarecimentos sobre o processo de certificação e progressos em práticas de rastreamento de cadeias produtivas. A Inditex não compra o algodão diretamente dos fornecedores, mas as empresas produtoras são auditadas por certificadoras como a Better Cotton.

Para Rubens Carvalho, da Earthsight, responsabilizar os europeus é parte da solução para acabar com o desmatamento e violações de direitos nos centros produtores de commodities, como o Brasil.

"O algodão ainda é pouco regulamentado nos mercados europeus. Eles precisam regular seu consumo e desvinculá-lo de impactos negativos ambientais e humanos. É preciso uma regulamentação séria, que puna em caso de descumprimento. Isso aumenta a pressão sobre os produtores", defende Carvalho.
Nádia Pontes

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