terça-feira, 9 de abril de 2024

Gaza: diagnóstico e um olhar sobre o futuro

Passaram seis meses desde que o Hamas perpetrou um horrendo atentado terrorista que matou aproximadamente 1200 pessoas e fez mais de 250 reféns, levando o Estado de Israel a declarar guerra contra aquele movimento. Esta guerra muito rapidamente passou a ser também uma guerra contra Gaza e a sua população civil, com mais de 2,3 milhões de habitantes — as estatísticas oficiais estimam que mais de metade é composta por crianças menores de 18 anos, que viram o cerco de mais de uma década imposto por Israel a tornar-se num bloqueio quase total de entrada de bens básicos à sobrevivência, como comida, água e medicamentos, assim como de saída de pessoas.

Os dados disponíveis são aterradores. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 33 mil palestinos morreram, dos quais mais de 12.300 eram crianças — note-se que este número não inclui os quase sete mil desaparecidos nos escombros da destruição. A ONU estima que 85% da população de Gaza está deslocada, tendo mais de um milhão e meio de civis ido buscar refúgio no Sul, zona indicada por Israel como segura e que atualmente está a ser alvo de uma incursão terrestre que se pode antever como catastrófica. Quando o conflito terminar, muitos destes deslocados não terão casa para voltar.

Em Gaza, a ajuda humanitária é escassa, seja porque Israel não autoriza a sua entrada, seja porque não há meios de distribuição, tendo quase todo o aparato da ONU sido destruído e as operações internacionais suspensas no seguimento do assassinato pelas forças de defesa israelita nesta semana, seis dos quais eram estrangeiros.


De acordo com o secretário-geral da ONU, António Guterres, registra-se em Gaza o maior número de pessoas enfrentando níveis de fome catastrófica e má nutrição alguma vez visto em qualquer lugar, a qualquer altura, num contexto em que Israel utiliza a fome como arma de guerra. Hospitais, universidades, escolas e infraestrutura civil foram totalmente destruídos. O trabalho jornalístico e de informação livre tornou-se quase impossível, na medida em que os media internacionais têm sido impedidos de entrar na região — dezenas de trabalhadores do sector dos media foram mortos, naquele que já é o conflito mais mortífero do século XXI para os jornalistas de guerra.

A falta de avanço nas negociações entre as partes mediadas por intervenientes regionais e internacionais — que nem durante o mês do Ramadão foram capazes de encontrar um consenso que pelo menos levasse a uma pausa humanitária e à libertação de reféns — faz com que uma perspetiva de futuro diferente pareça muito longínqua. Ainda assim, face à destruição e terraplenagem bélica de Gaza, com ameaças constantes de escalada regional e estando à frente de Israel o Governo mais radical da sua história, nunca é cedo de mais para se pensar quais são as possibilidades de futuro para esta região e o que podemos esperar, virada a página destes seis meses de guerra.

Com a aproximação deste meio ano de conflito, o cenário internacional parece estar a mudar. Depois de várias tentativas falhadas iniciadas ainda em meados de outubro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU aprovou finalmente, a 25 de março, uma resolução exigindo um cessar-fogo imediato, embora temporário, e que teria lugar durante o mês do Ramadão, que termina na próxima terça-feira. Esta aprovação foi possível com a abstenção dos Estados Unidos, um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, que detém, juntamente com o Reino Unido, a França, a China e a Rússia (os chamados P-5), o poder de veto.

Pese embora o desrespeito pré-anunciado pelo cumprimento desta resolução por parte de Israel, a sua aprovação representa o culminar do isolamento internacional do Governo de Benjamin Netanyahu, que vem tomando proporções nunca vistas antes. Isto inclui uma alteração profunda (ainda que, para já, apenas ao nível discursivo) da posição norte-americana, expressa nas declarações do líder da maioria democrata no Senado dos EUA, o judeu Chuck Schumer, que defendeu eleições e uma mudança de liderança em Israel; bem como no telefonema de Joe Biden desta semana, que desencadeou a decisão de abertura temporária da passagem de Erez para a entrega de ajuda humanitária no Norte da Faixa de Gaza; e na declaração pública de Anthony Blinken durante o Conselho da NATO, na qual o secretário de Estado dos EUA afirma que, se Israel não mudar a sua postura, os Estados Unidos vão modificar sua política relativamente ao país, acrescentando que Israel se arrisca a tornar-se indistinguível do Hamas se continuar a não proteger as vidas humanas.

Por um lado, esta aparente mudança de posição ainda não parece representar uma esperança para o futuro do povo palestiniano. Os EUA continuam a ser, para todos os efeitos, os maiores apoiantes morais e financeiros de Israel, não tendo ainda prescindido do último, o mais importante no contexto do esforço de guerra. Contudo, se a ambiguidade norte- americana pode deixar os mais céticos de olhos revirados, a verdade é que Netanyahu tem esticado a corda a níveis tão extremos que posiciona Joe Biden como um líder fraco e contraditório. A aproximação de eleições norte-americanas em novembro deste ano não traz bons augúrios para quem espera que a superpotência venha a transformar a sua coação em ação e possa alterar o equilíbrio de forças em Israel. No entanto, justamente por causa do cenário eleitoral que se aproxima, podemos passar a ver as ações de humilhação constantes do Governo de Netanyahu contra o Presidente dos Estados Unidos levarem a uma mudança concreta de posicionamento.

Uma coisa, pelo menos, é certa: os cidadãos do Estado de Israel já começam a verbalizar que este Governo, cuja contestação já era enorme antes de outubro de 2023, está a comprometer a relação especial com o principal aliado histórico do país. Além disso, cresce a percepção de que a guerra de Netanyahu tem contornos pessoais, visando a sua manutenção no poder no contexto das investigações de corrupção que enfrenta, e tendo pouco ou nenhum interesse no resgate dos reféns. O movimento “not in our names” tem ganhado força. E isto, sim, pode ser um divisor de águas em termos de mobilização social com eventual impacto eleitoral, levando a uma alteração de liderança que poderá modificar o rumo deste conflito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário