segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O todo pela pior parte

É muito comum, nos meios progressistas, escutar que a postura verdadeiramente democrática consiste em estabelecer um amplo diálogo com todas as correntes de opinião, da direita à esquerda, desde que a conversa aconteça dentro do marco do respeito aos direitos humanos. Em seguida, normalmente se esclarece que o conservadorismo está fora desse marco. (Estou usando o termo não personalista “conservadorismo” para me referir ao que normalmente chamamos de “bolsonarismo”.) Mas será mesmo que os conservadores não respeitam os direitos humanos?

Por trás desse pressuposto amplamente difundido, há uma redução do todo à pior parte. O desacordo — e mesmo o desgosto — de progressistas pelos conservadores faz com que procurem seus piores elementos e os tratem como se fossem casos típicos, casos exemplares. Dessa maneira, distorcem e caricaturam o conservadorismo, tratando-o como meio essencialmente machista, obscurantista, antidemocrático e violento. A realidade, porém, é mais complicada.

Os conservadores valorizam a família, querem uma abordagem mais dura contra a criminalidade e são desconfiados de mudanças muito aceleradas nos costumes. Porém, como mostram as pesquisas, a grande maioria é contra a violência doméstica, é contra a perseguição e a discriminação de homossexuais, defende o respeito às escolhas das mulheres e a igualdade salarial entre os sexos.

O reducionismo e a distorção progressista destacam e amplificam no conservadorismo apenas o ridículo, o grotesco e o caricato, seja para atacar o adversário, seja para reafirmar o sentimento de pertencer ao lado “certo”, o lado “anti-eles”. Na imaginação progressista, o comportamento conservador típico não é aquele das igrejas que combatem a violência doméstica, a discriminação e promovem o respeito entre marido e mulher, mas o dos pequenos nichos de coaches de conquista, das tradwives que defendem a submissão aos maridos e dos ultratradicionalistas de toda sorte.


É verdade que esses elementos caricatos, violentos, reacionários e antidemocráticos existem e se abrigam no campo político conservador. Os progressistas podem perguntar por que então são tolerados ali. A resposta pode ser encontrada devolvendo a pergunta aos progressistas e pedindo que façam, eles também, um esforço de autoexame.

Por que nós, progressistas, toleramos em nosso meio apoiadores de ditaduras como Cuba, Nicarágua ou Venezuela? Por que toleramos em nosso meio feministas que dizem que toda relação heterossexual é um estupro? A resposta honesta é que toleramos essas posições nos meios progressistas porque partilhamos com elas alguns pressupostos e valores sobre como a sociedade deveria se organizar. Isso vale também para os conservadores.

O drama de nossa época politicamente polarizada é que essa caricatura que fazemos do adversário termina, no longo prazo, por moldá-lo. Ao reduzirmos o campo adversário a seus piores elementos, sinalizamos que são esses elementos os que mais nos incomodam. No outro lado, o ódio do adversário aparecerá como prestígio. Os grupos odiados pela esquerda se apresentarão na direita como os que mais incomodam, os que são verdadeiramente “anti-eles”. Pouco a pouco, vamos nos transformando na caricatura que o adversário faz de nós. Vamos nos tornando, nos dois lados, monstros.

A saída, um pouco contraintuitiva, é tentar escapar do jogo da polarização e se concentrar em cuidar da própria casa. Nossa principal responsabilidade é evitar que os piores elementos do nosso campo se desenvolvam e prosperem, com o empurrãozinho que recebem do adversário. Em resumo, precisamos de menos polarização e mais autocrítica.

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