Fiz quatro visitas de trabalho aos apinajés. Duas como antropólogo e duas vivendo simultaneamente o papel de marido e de genitor de três crianças que acabaram sabendo mais da vida local que o antropológico pai. A saudade não foi tema de um livro intitulado “Um mundo dividido”, publicado em 1976. Nele, o assunto era parentesco e organização social, com a consequente exclusão de sentimentos como as lágrimas e a saudade, que mestre Marcel Mauss classificou — em 1921 — como “obrigatórios”. Sentimentos moldados pela cultura, de fora para dentro, por socialização, e não devidos a uma emoção impulsiva. Entretanto discuto intensamente no livro o dualismo ou a polaridade institucionalizada, revelando como entre os apinajés essa relação era positiva, e não destrutiva como testemunhamos nestes tempos bárbaros entre nós. Para espanto do autor, o livro está esgotado, e uma nova edição deverá vir à luz pela Editora Rocco.
Estas mal traçadas registram um emocionado regresso, realizado na semana passada. Regresso acompanhado de minha mulher, Christina, e de meu filho Renato, biólogo da Universidade Darcy Ribeiro. A viagem foi obra de um projeto do colega Celso Castro, diretor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, e de sua equipe, sem olvidar o grande conhecedor dos apinajés, o colega Odair Giraldin.
Da Matta conviveu com tribo entre 1962 e 1970 |
Depois de uma ausência de 40 anos, o grupo articulado pelo professor Celso Castro era uma prova a justificar esse tempo coberto de saudade. Palavra e categoria emocional reconhecidas também pelos apinajés como parte do seu sistema de relações sociais e, assim, celebrada em todos os retornos, num ritual de boas-vindas marcado pelo rigor, para muitos paradoxal, de um choro obrigatório que certamente traria deleite a Mauss, de cânticos especiais e de muitos soluços e lágrimas de saudade.
Quem — como eu — regressa à comunidade apinajé é formalmente recebido na entrada do grande círculo situado no centro da aldeia, sendo imediatamente engolfado pelas pessoas a ele (ou ela) ligadas. No meu caso, mulheres idosas aparentadas a meus pais adotivos, meus nominadores e professores. Os soluços e lágrimas trazem de volta a rede de relações do viajante ausente e dos presentes — as pessoas amadas, cujos nomes saem de dentro do soluçar ritmado de todos os que passaram desta existência para a grande, invisível e interminável aldeia dos mortos, situada no poente, onde se espera uma segunda morte sem choro e sem dor, porque se é definitivamente esquecido.
Essa recepção calorosa, esse acolhimento tão generoso, foi um momento culminante na minha vida profissional. Não é possível expressar tudo o que senti no espaço que me cabe nesta coluna que tenho me esforçado por honrar.
Entre soluços e lágrimas de saudade, surgiu na minha mente e no meu velho coração o trecho final do livro “A Ponte de São Luís Rei”, no qual Thornton Wilder sabiamente nos conforta:
— Em breve, porém, morreremos todos, e toda recordação terá deixado o mundo. E nós mesmos seremos um tempo amados e, depois, esquecidos. Mas o amor terá bastado, pois todos esses impulsos do amor voltam ao amor que os criou. Nem a memória é necessária ao amor. Há uma terra dos vivos e uma terra dos mortos, e a ponte entre elas é o amor: o único sobrevivente, o único significado.
Fiquei grato e feliz ao descobrir que, a despeito do ideal de objetividade, a saudade e o amor se intrometeram na minha antropologia. Esses sentimentos constituem o que designei numa comunicação de “Anthropological blues” — o blues do meu ofício e da nossa prodigiosa condição humana.
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