Illinois é o estado americano governado pelo empresário democrata J.B. Pritzker, cuja fortuna familiar, ancorada na antiga rede hoteleira Hyatt, abriga 11 bilionários. O ilustre sobrenome também honra o mais prestigioso prêmio mundial de arquitetura, criado pelo patriarca há quase 50 anos. Dias atrás pousou na mesa de Pritzker uma lei fácil de assinar, fossem outros os tempos. Só que nada mais é banal ou simples no inglório contexto atual de guerras culturais. Daí o texto a ser chancelado pelo governador adquirir ares quase revolucionários, quando enuncia, simplesmente, que é proibido proibir:
—Fica declarado ser política do estado incentivar e proteger a liberdade de bibliotecas e do sistema bibliotecário para a aquisição de materiais, sem ingerência externa; fornecer-lhes proteção contra tentativas de banir, remover ou restringir o acesso a livros e outros materiais.
Para receber verba do governo, Illinois exige que suas 645 bibliotecas públicas e 2.577 escolares assinem (e sigam) dois princípios básicos da Declaração de Direitos da Associação Americana de Bibliotecas: “apresentar os vários pontos de vista sobre temas atuais e históricos”, e “materiais não podem ser proscritos nem removidos por motivos doutrinários ou partidários”. Desde 1982, por sinal, em julgamento de um caso relativo à autonomia de uma escola (Board of Education v. Pico), a Suprema Corte do país já sustentara o princípio constitucional que proíbe “a supressão de ideias”.
Mas isso foi lá atrás, nos tempos em que a Terra ainda era redonda. Em 2023, 12 dos 50 estados americanos já se inclinam a seguir o receituário corrosivo do governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, que testa suas chances presidenciais para 2026 tensionando os limites legais de sua autoridade. Menos carismático (por extravagante) que sua nêmesis Donald Trump, o homem que precisaria derrotar nas prévias do partido, DeSantis não é menos incendiário na arte de demonizar mulheres, minorias, causas sociais, negros. E livros, sobretudo livros.
Está em vigor na Flórida, há mais de um ano, a lei que exige que cada livro oferecido em sala de aula ou biblioteca de cada escola pública do estado “seja selecionado e aprovado por um funcionário distrital com especialização certificada em livros educacionais”. Caso materiais considerados danosos para menores forem usados apesar da proibição, uma pena de até cinco anos de prisão e multa de US$5 mil s ão aventadas pelo Departamento de Educação. Como era de prever, desde então reina confusão, medo, caos e impossibilidade de cumprimento da seleção prévia, tanto pelo volume de livros a analisar quanto pela escassez de “especialistas”.
Como todo tiranete, autocrata ou ditador, era o que DeSantis queria — estantes esvaziadas ou encobertas, algumas bibliotecas fechadas, educadores amedrontados. Sob argumentos variados, o ensino de História do Negro, que finalmente passara a constar pelo menos na grade extracurricular, foi vetado. Como escreveu a jornalista Amanda Marcotte na Salon, “o governador estabeleceu a regra de que um aluno simplesmente não deve poder percorrer uma estante na biblioteca e apanhar um livro para ler sozinho. Ele estigmatizou a curiosidade”. Tem mais: como alguns volumes já analisados foram liberados com tarja de advertência, espraia-se a mensagem subliminar de que livros são inerentemente perigosos. “Políticas públicas assim causam um efeito cascata”, continua Marcotte, “a prática da leitura deixa de ser um bem social e passa a ameaça que precisa ser regulada.”
Foi empunhando a bandeira da defesa dos “direitos dos pais” que a nova lei recorreu ao genérico “pornografia” para proibir uma edição ilustrada do clássico A Bela Adormecida em que as nádegas da rainha na banheira estão expostas. Critérios ainda mais obscuros fizeram sumir desde “Amada” e “O olho mais azul”, de Toni Morrison, até “O caçador de pipas”, de Khaled Hosseini. Se depender de DeSantis e seus vigilantes, crianças da Flórida nunca aprenderão quem foram Rosa Parks ou o grande abolicionista Frederick Douglass — “sem valor educacional”, foi o veredito. Do outro lado do mundo, na Índia comandada por Narendra Modi, o ano letivo de 2023 também viu removidos dos livros didáticos não apenas a Teoria da Evolução de Darwin, como todo um leque de conteúdos referentes à História dos muçulmanos e à democracia.
É em momentos assim que cabe domar a impaciência diante de tantos engasgos graves do governo atual e olhar para o pior. O que seria da castigada educação pública brasileira se submetida a mais quatro anos de bolsonarismo? Melhor nem pensar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário