Toda civilização conhecida, quer esteja decifrada ou não, possui valores mais ou menos organizados que nos ajudam a estabelecer critérios e limites para saber o que elas são ou foram. Não importa se já não são práticas sociais vigentes, se já não exista uma população que as represente com significância no mundo real. O que importa é que elas existam ou que tenham existido de modo concreto, deixando seus herdeiros de hoje a praticar, mesmo que não tenham consciência disso, o que foram suas práticas.
Stefan Zweig era um pensador europeu que, em 1941, escreveu um livro sobre o Brasil, em que dizia que o brasileiro era um homem sem futuro. A cultura do brasileiro era esquálida, ele nunca teve poesia a que se referisse em tempo muito anterior ao que vivia, um passado pré-histórico como o dos povos da Europa. Os brasileiros não tinham uma tradição literária ou uma religião primitiva, “não há lendas populares conservadas ao longo dos séculos”. Em suma, o Brasil era um país do futuro porque não tinha um passado!
Mas, aos poucos, esse passado foi se esclarecendo graças à invenção do que se sucedia naquele presente inútil.
O brasileiro foi descobrindo, com sofrimento e decepção, que esse passado de costumes ia sendo construído graças às narrações do presente. E essas narrações eram do presente porque não podíamos viver sem elas. Elas eram também o nosso futuro.
Isso tudo se misturava em ideias de gente como Gilberto Freyre, Paulo Prado, Sergio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade, Darcy Ribeiro, etc, essa gente que por hábito passou a escrever, ninguém sabe direito se inventando um país por cima de ilusões e histórias ou se organizando o país desorganizado, a nação que eles sonhavam tanto poder ter. Quem sabe, apenas para poder escrever sobre ela, criar seus costumes como crianças que inventam seus brinquedos.
Agora lí um desses criadores que me encheu de prazer como todos os outros que citei e que poderia ainda citar mais. Como o antropólogo Manuel Diégues Júnior, que se dedicou a Alagoas, sua terra natal, onde difundiu a obra de Gilberto Freyre, o mestre a quem tanto ensinou, como em “O bangüê nas Alagoas”, em que conta como era a vida social, econômica e cultural nos tempos do engenho.
Mas o que acabo de ler é o assombroso relato de “O tupinambá que virou planeta”, de Rafael Pinotti. Ubiratã é um indígena de origem tupinambá que se obriga a uma caminhada em direção do Oeste do continente americano, em busca do sol. No caminho, ele se casa com Moema, indígena como ele, cruza com os franceses na luta pela conquista da Baía de Guanabara e vive emocionante ocupação do território Inca no Peru. No rumo de Ubiratã, o autor nos conta histórias como a do casal de meninos que vivia em ilhas, uma em frente à outra.
O périplo de Ubiratã vai terminar na Terceira Parte do livro, quando ele se torna seu título, num belo e misterioso conjunto de situações que somam sua origem indígena com seu fim ligado ao progresso e à visão científica da astronomia a seu alcance.
Vou voltar, aqui mesmo, ao livro, seu autor e seu personagem. Talvez possamos entender então o que dizia Gilberto Freyre, no prefácio de “O bangüê nas Alagoas”: “É um sistema de que ninguém consegue separar a formação brasileira”.
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