terça-feira, 5 de abril de 2022

Adeus, Putin!

Os serviços de informações americanos acreditam que Vladimir Putin tem vindo a ser enganado pelos seus ministros, conselheiros e generais, no que diz respeito aos desaires militares na Ucrânia e aos prejuízos decorrentes das sanções econômicas. Com receio de encolerizar o ditador, os conselheiros estariam a esconder-lhe os números reais de mortos e feridos, e outros dados fundamentais para que ele consiga gerir o conflito, quer no plano bélico, quer no plano diplomático.

Nada de novo. Esta é uma armadilha na qual, quase sempre, os tiranos acabam tristemente aprisionados. Um dos casos mais extraordinários é o de António Oliveira Salazar. Um livro recente do jornalista e escritor italiano Marco Ferrari, “A incrível história de António Salazar” (publicado em Portugal pela Objectiva), veio relembrar um dos episódios mais assombrosos, e também mais anedóticos, da biografia do velho déspota português.

Em 1968, após sofrer um grave acidente vascular cerebral, António de Oliveira Salazar foi substituído na Presidência do Conselho de Ministros por Marcelo Caetano. Contudo, ninguém — absolutamente ninguém! — teve coragem de lhe dizer que fora apeado do poder. Os ministros continuaram a reunir-se com o ditador, fingindo tomar notas, e inventando toda uma realidade exterior. O Diário de Notícias, à época o jornal mais lido no país, passou a imprimir diariamente uma falsa edição, com notícias das reuniões entre Salazar e os seus ministros, e as decisões nunca executadas do ditador. A RTP, o único canal de televisão no país, produzia também falsos noticiários, para consumo exclusivo do iludido paciente. A laboriosa fraude prolongou-se por quase dois anos, até 27 de julho de 1970, quando finalmente Salazar deixou este mundo.

O caso de Salazar lembra muito a maravilhosa comédia “Adeus, Lênin”, do diretor alemão Wolfgang Becker. No filme de Becker, uma mulher da Alemanha Oriental, fervorosa militante comunista, a senhora Kerner, entra em coma poucos dias antes da queda do Muro de Berlim. Ao despertar, em 1990, o seu país já não existe — nem o comunismo. Alexander, o filho, esconde-lhe a verdade, receoso de que a mãe sofra uma recaída. Para isso, precisa ressuscitar, no pequeno quarto onde a doente recupera, a finada República Democrática Alemã, fabricando doces e outros produtos que não existem mais, e recorrendo à produção de falsos documentários.

O realizador da série da Netflix “A Casa de Papel”, Jesus Colmenar, anunciou entretanto a intenção de dirigir um filme sobre os últimos anos da vida de Salazar.

Fico imaginando Vladimir Putin, passeando na pesada solidão dos seus palácios, enquanto ministros e generais se afadigam na sombra, imprimindo jornais falsos, produzindo documentários de vitórias imaginadas, apresentando-lhe os duplos de generais que, entretanto, morreram nas frentes de batalha. Numa incerta noite, porventura já não muito distante, toda a ficção se começará a desmanchar e Vladimir Putin despertará nas ruínas de um país destruído pela sua ambição e pela sua cegueira. Quem troça da verdade acaba invariavelmente devorado por ela.

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