Debate sucessório incipiente, disseminação de fake news, inquietação militar, polarização ideológica. A identificação de alguns temas dominantes no noticiário de 1921 poderia levar à conclusão de que o Brasil não mudou muito em cem anos.
A coincidência de assuntos em destaque, no entanto, não é indicativo de que o Brasil de hoje seja semelhante ao país de nossos avós ou bisavós. O início dos anos 20 do século passado foi um período de transição. Muitas das guinadas de efeito duradouro que só se concretizariam em 1922 resultaram do caldeirão de transformações políticas, sociais e culturais que já fervilhava no ano anterior.
Começavam a aparecer as primeiras fissuras nos pilares da política oligárquica, que desde o início do século sustentava a Primeira República. Novos atores ensaiavam entrar no palco da política nacional, onde encenariam um roteiro que, para o bem e para o mal, daria cara nova ao país nos anos seguintes. Esse período ainda teria uma sobrevida, até a chamada revolução de 1930.
O Brasil não passava de uma pequena fração do que é atualmente —seus cerca de 30 milhões de habitantes eram 15% da população de hoje. Mas vinha crescendo com alguma velocidade. O país tinha dobrado a população desde a virada para o século 20.Ao contrário da nação predominantemente agrária dos tempos do Império, cerca de metade das pessoas já vivia nas cidades. Dois terços, no entanto, embora morassem em centros urbanos, ainda dependiam de atividades rurais –era a população “rurbana”, na expressão cunhada por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder”.
A industrialização embrionária havia introduzido o que os jornais da época, com um olhar de cima para baixo, chamavam de “questão social”. Ainda estava fresca na memória a greve que, em 1917, havia paralisado as fábricas de São Paulo –quase todos os 50 mil operários da cidade cruzaram os braços.
Nos anos seguintes, eclodiram centenas de movimentos similares, ainda que de menor envergadura. No Rio de Janeiro, onde a maioria dos trabalhadores era brasileira, o movimento se alimentava de reivindicações salariais. Em São Paulo, com a influência dos operários estrangeiros anarquistas, o sindicalismo tinha também um veio revolucionário.
Em 1921, todos esses elementos novos nutriam o noticiário. O operariado e uma emergente classe média –com mais funcionários públicos, comerciantes e profissionais liberais— exerciam uma pressão difusa contra os esquemas eleitorais viciados da Primeira República, que subtraíam qualquer representatividade aos governos.
O presidente era o paraibano Epitácio Pessoa. O conhecido arranjo em que São Paulo e Minas Gerais se alternavam no poder —a política do café-com-leite— daria margem a se imaginar que um mandatário de outro Estado representasse algum grau de ruptura. Mas não era o caso.
Epitácio fora escolhido para resolver o impasse criado entre as elites dominantes, com a morte, em 1919, do presidente eleito Rodrigues Alves. Depois de tentar, sem êxito, manter uma equidistância entre paulistas e mineiros, o paraibano acabou pendendo para o lado dos barões do café.
Sem se livrar totalmente da sua condição de outsider, Epitácio não conseguiu influenciar o processo sucessório. Depois do interregno que representou seu mandato, São Paulo e Minas retomaram o acordo de seus partidos republicanos locais e, no início de 1921, na metade do governo de Epitácio, já haviam decidido que o presidente seguinte seria um mineiro —Arthur Bernardes.
A antecipação do resultado, porém, não garantiria um processo eleitoral tranquilo. Ao contrário, a candidatura de Bernardes foi objeto de uma campanha oposicionista espalhafatosa para os padrões elitistas da época e dominada pelo que hoje os brasileiros chamam de fake news.
O entendimento dos fatos, que era simples para os contemporâneos, depende de um breve contexto. Colocado à margem da decisão principal, Epitácio ficaria com uma espécie de prêmio de consolação: a escolha do candidato a vice-presidente. Contrariado com os caciques do Rio e de São Paulo, no entanto, ele abriu mão da prerrogativa, tumultuando o meio de campo do jogo sucessório.
A atitude de Epitácio abriu espaço para uma disputa acirrada entre outros estados com menos peso no cenário nacional. O Rio Grande do Sul, sempre interessado em ampliar a presença na política nacional, tentou preencher a vaga de vice. Sem êxito, porém, bandeou-se para a oposição.
Encabeçava a chapa da oposição o ex-presidente Nilo Peçanha, que governara com o apoio de Pinheiro Machado, um nome central na política gaúcha. Herdeiro de um mandato-tampão (obtido com a morte do presidente mineiro Afonso Pena, em 1909), o fluminense Peçanha e os gaúchos haviam feito o sucessor, o marechal Hermes da Fonseca. Foi o único momento em que, depois de instituída como principal mecanismo do exercício de poder alternado, a política do café-com-leite não prevaleceu.
Em 1921, Peçanha contava também com o apoio da Bahia e de Pernambuco, estados também preteridos, ao lado do Rio Grande do Sul, na escolha do vice de Bernardes. Juntos, eles formaram a Reação Republicana, movimento que agitaria a campanha eleitoral e provocaria inquietação militar.
A crise teve início em outubro, quando um jornal do Rio, o “Correio da Manhã”, publicou duas cartas, atribuídas a Bernardes, com ataques a Hermes da Fonseca e Nilo Peçanha.
O Exército gostava tanto de Hermes que o havia catapultado para a presidência do influente Clube Militar. O recente banquete que marcara sua posse foi alvo de provocação. “Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados”, teria escrito o candidato Bernardes. Peçanha é tratado como “moleque” e “pobre mulato”. Generais são chamados de “anarquizadores”.
O objetivo das cartas era antagonizar seu suposto autor com os eleitores de centros urbanos, como o próprio Rio, onde Hermes e Peçanha desfrutavam de popularidade.O Clube Militar encomendou uma perícia, que atestou a autenticidade dos manuscritos. No final do ano, a dois meses do pleito, os militares exigiram a retirada da candidatura de Bernardes, o que não aconteceria, e passaram a apoiar Peçanha.
Posteriormente, ficaria provado que as cartas —que haviam sido usadas meses antes para chantagear o próprio Bernardes— eram falsas. Ao publicá-las sem qualquer checagem, o jornal, antigovernista, prestou-se a fazer o jogo da oposição.
Do ponto de vista eleitoral, a armação foi inócua. Sem surpresa, Bernardes seria eleito em março do ano seguinte. Mas a excitação da caserna levaria à eclosão do tenentismo em 1922, um movimento em defesa de ideias liberais pela via autoritária, algo que marcaria a política brasileira pelas décadas seguintes.
Homem público deslocado do centro do poder mesmo antes do final de seu mandato, Epitácio Pessoa garantiu uma sobrevida ao sistema oligárquico, inclusive decretando o estado de sítio, após a tentativa frustrada da tomada do Forte de Copacabana em 5 de julho de 1922.
Perdeu muitas batalhas. Ainda na crise sucessória, foi deixado falando sozinho quando sugeriu que Bernardes, depois de eleito, desistisse de tomar posse, uma vez que, em sua avaliação, ele não se sustentaria muito tempo no governo. Mas o ex-senador e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal usou seu prestígio pessoal na defesa dos interesses da elite, governando numa época em que o modelo vigente dava sinais de desgaste e o novo ainda não nascera.
Se 1922 foi o ano da grande agitação, 1921 foi o ano da preparação. Arquitetava-se a Semana de Arte Moderna, um ponto de inflexão na literatura brasileira. Debatia-se a formação do Partido Comunista, um dos polos ideológicos em que o mundo seria dividido nas décadas seguintes. E se alimentava a fogueira da revolta tenentista, que no fim dos anos 20 ajudaria a derrubar a Primeira República. Em 1921, os episódios que marcariam 1922 estavam no forno.
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