segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Como ditadura brasileira atuou para derrubar Allende e patrocinar governo a sua semelhança no Chile

Pinochet deixou patente uma dívida com o regime militar brasileiro quando embarcava para a sua primeira viagem internacional como presidente, para a posse de Ernesto Geisel em março de 1974:

— Ainda estávamos disparando quando chegou o embaixador brasileiro e comunicou o nosso reconhecimento — disse a uma revista chilena.

Não era apenas força de expressão do ditador. No final da tarde de 11 setembro de 1973, enquanto o corpo de Salvador Allende ainda era levado ao hospital para ser autopsiado e havia tiroteios nas ruas, Antonio da Câmara Canto, embaixador brasileiro em Santiago, estava na cerimônia de posse da junta que assumia o “poder supremo” do país — controle sobre Executivo, Legislativo e Judiciário. Até onde se sabe, era o único estrangeiro presente


A tomada do poder pelos militares consumava antigos anseios brasileiros. Desde antes de o socialista Allende assumir em novembro de 1970, funcionários do governo Médici conspiraram ativamente para sabotar o governo da Unidade Popular e facilitar a ascensão de um regime aos moldes do brasileiro. Antes do golpe, isso significou, por exemplo, apoiar grupos de inspiração neofascista em preparação para uma guerra civil. Depois dele, oferecer ao novo regime empréstimos a juros baixos a, respaldo diplomático e treinamento para a repressão.

Em “O Brasil contra a democracia” , lançado neste mês pela Companhia das Letras como parte da coleção Arquivos da Repressão no Brasil, o jornalista e analista político Roberto Simon reconstrói, em riqueza de minúcias, como e por que os militares brasileiros, em consonância com setores empresariais e veículos da imprensa nacional, auxiliaram um golpe militar no Chile. A análise geopolítica e anedotas dos bastidores da História entrecruzam-se com fluidez no relato, narrado por vezes em ritmo de filme de espionagem.

A pesquisa, que levou mais de sete anos para ficar pronta e começou como uma série de reportagens no jornal Estado de São Paulo, usa como fontes arquivos em Brasil, Chile e EUA, e também entrevistas com exilados políticos, soldados, diplomatas, políticos, empresários e jornalistas.

Em seu estudo, Simon deseja se contrapor a duas interpretações históricas. Em primeiro lugar, a concepção — própria, segundo ele, a setores da esquerda — de que, ao apoiar o golpe no Chile, a ditadura militar brasileira agia como capanga de Washington. É verdade, argumenta o autor, que a Casa Branca contava com o Brasil para barrar o avanço da esquerda no continente. Igualmente, o presidente Richard Nixon encantou-se com o estilo de Médici ao conhecê-lo em 1971. Na mesma conversa, também trataram com inquietação do Chile de Allende, e mencionaram uma possível intervenção militar. Segundo o livro, a afinidade pessoal e o fervor anticomunista comum, contudo, não levaram a ações coordenadas pelo golpe. 

— Havia grande sintonia entre Médici e Nixon, que se apoiavam. Mas não há evidências de que houve uma operação conjunta do Brasil com os EUA para enfraquecer o governo Allende — disse Simon ao GLOBO. — Havia dois países anticomunistas, que se gostavam e atuavam de forma consonante, mas não articulada.

O pesquisador demonstra que abundavam ímpetos golpistas no próprio seio do regime militar brasileiro, sem que fossem necessárias ingerências estrangeiras para nutri-los. Para o Planalto, o triunfo do socialismo chileno constituía uma ameaça direta à segurança nacional. Depois de Cuba, o país às margens do Pacífico se tornaria uma “cabeça de ponte do comunismo na América do Sul”, de onde brotaria uma miríade de guerrilhas.

O entendimento de que o Chile passaria a ser um centro de irradiação da luta armada e do comunismo, de acordo com o livro, não passava de um engano paranoico. A via revolucionária chilena era estritamente pacífica, à base de “empanadas e vinho tinto”, como dizia o slogan de Allende. Cônscio da sua fragilidade interna e regional, o presidente evitava avariar relações com Argentina, Brasil e outros países, limitando-se a oferecer asilo político a exilados.

Além da geopolítica, o abrigo aos expatriados constituía o outro interesse do governo Médici. O Chile tinha longa tradição de acolhimento a exilados, e tornou-se o principal destino de quem escapava da ditadura brasileira no início da década de 1970 — segundo estimativas, a comunidade chegava a 5 mil pessoas.

Lá estavam desde ex-guerrilheiros envolvidos em sequestros a acadêmicos, e misturavam-se nomes que marcariam a História do Brasil — como Darcy Ribeiro, Herbert de Souza, José Serra e Marco Aurélio Garcia. A embaixada em Santiago encarregava-se de monitorar e se infiltrar na comunidade exilada, reunindo dados de inteligência.

A isso se liga a segunda interpretação da História que o livro contesta: a ideia de que o Itamaraty passou incólume à ditadura, com a diplomacia tendo ação independente do regime, supostamente em prol do desenvolvimento e até da democracia. “Nessa versão oficialista, meganhas e diplomatas-araponga são a exceção que confirma a regra da não ingerência e, de modo mais geral, da inocência da diplomacia brasileira”, escreve Simon.

No lugar disso, o autor mostra como a política interna interferia nos rumos da atuação internacional do Brasil. Havia uma cadeia de comando que saía de Médici, passava pelo chanceler Mário Gibson Barbosa e estendia-se até o embaixador Câmara Canto. Segundo a pesquisa, o ministro tinha plena ciência do abandono de brasileiros presos no Estádio Nacional — onde, ainda em outubro de 1973, passaram agentes de Médici — para serem torturados e executados sumariamente.

— A Chancelaria integrou, institucionalmente, a repressão — diz Simon.

Em seu terço final, o livro explica como, aos poucos, o governo Geisel buscou descolar a sua imagem de Pinochet. Consolidada a ditadura, Brasília não tinha mais motivos para se preocupar com um antro da subversão em seus arredores. Ações como o assassinato de dissidentes na Europa eram consideradas arriscadas demais pelo Planalto, que caminhava em sua abertura “lenta, gradual e segura”.

Em 2013, quando Simon começou a pesquisa, a sua série de reportagens teve impactos na Comissão da Verdade. Nas últimas páginas, o autor se diz surpreso pelo fato de que palavras como “golpe”, “ditadura”, “tortura” e “Pinochet” tenham desde então passado a despertar controvérsia. Com a volta das Forças Armadas à vida política do país, a leitura assume imprevista relevância. Para Simon, “alguns paralelos mostram uma grande semelhança, e outros mostram uma grande diferença” entre os momentos:

— O Itamaraty então era muito realista, capaz de coletar informações, analisá-las e supri-las ao presidente. Quando o ministério hoje denuncia fraude em larga escala na eleição americana, está descolado da realidade — afirma Simon. — Mas, em sua reação a denúncias ligadas a crimes ambientais, o bolsonarismo se assemelha muito à reação da ditadura às denúncias sobre violações de direitos humanos. Em ambos os casos, há a ideia da existência de uma conspiração internacional contra o Brasil, e que é possível enfrentar essa pressão exclusivamente por meio da propaganda, sem uma política séria.
André Duchiade

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