sábado, 28 de setembro de 2019

O espetáculo brutal da nulidade absoluta

Ficaram envergonhados com o discurso de Bolsonaro na ONU? Espantaram-se com a audácia do capitão de revelar ao mundo de forma límpida toda a sua sordidez? Ou talvez tenham achado o discurso um espetáculo de soberania, a reafirmação do Brasil perante os líderes globais, o “Brasil-Alfa” que habita a imaginação de Bolsonaro e de seus eleitores. Aos que possivelmente tenham pensado assim, digo: Bolsonaro não teve vergonha de mostrar para o mundo o espetáculo brutal de sua nulidade absoluta. A falta de vergonha do presidente brasileiro não permite que os brasileiros e brasileiras de bom senso sintam vergonha do Brasil. O Brasil é maior que Bolsonaro. O Brasil está dentro de todos nós que não aceitamos a visão retrógrada que nos foi imposta por aqueles que infelizmente enxergaram nas teorias conspiratórias, nas mentiras, na pequenez e na falsidade de Bolsonaro o caminho para livrar-se do PT — ao menos, é assim que continuam a justificar seu voto francamente injustificável após o espetáculo brutal da nulidade absoluta.


O Brasil que saiu da ONU saiu menor, saiu mais irrelevante, saiu como um franco-atirador que mira na cabeça de uma menina de 8 anos e atira pelas costas. Como já devem ter percebido, esta coluna não será sobre economia. Esta coluna será sobre um presidente que se apresentou ao mundo, como tantos outros e outra antes dele, mas de forma agressiva e intolerante. Houve distorções em profusão no discurso de Bolsonaro, mas é trabalho de outros esmiuçá-las para os que se interessam pelos fatos. O meu é dar destaque aos trechos mais abjetos do discurso que abriu a Assembleia Geral das Nações Unidas. Bolsonaro atacou todos os que pensam de modo diferente dele e de seu entorno ao chamar de socialistas todos os governos e participantes de governos que vieram antes dele e todos os que a ele se opõem — inclua-se entre os socialistas o governo de Michel Temer. Ao fazer isso, Bolsonaro atacou a liberdade de expressão de todos os brasileiros, desqualificando as opiniões dos que não se dobram a seu discurso de nível tão baixo que faltam as palavras para qualificá-lo. Teve o desplante de dizer que militares e civis morreram bravamente para combater os agentes cubanos que instalariam a ditadura socialista imaginária no Brasil. Afirmou, em trecho especialmente sem pé nem cabeça, que não pode haver liberdade política sem liberdade econômica e “vice-versa”. O conceito de liberdade política todos sabemos minimamente o que é — chama-se democracia. Já o conceito de liberdade econômica não se resume ao “livre mercado”, como pensa o presidente. É mais complexo, mais nuançado, menos branco — é pardo. Pardo como a maioria dos brasileiros e brasileiras.

Bolsonaro chamou de falácia a ideia de que a Amazônia é patrimônio da humanidade. Mas o que seria a Amazônia senão patrimônio da humanidade? Trata-se da maior floresta tropical contínua do planeta, repleta de espécies ainda não descobertas de plantas e animais, abrigo de populações indígenas, que, num tropeço de palavras, Bolsonaro reconheceu explicitamente como seres humanos. Haveria possibilidade de serem outra coisa? Chamou indiretamente mineradores para explorar as reservas ianomâmis logo em seguida, exaltando as riquezas inexploradas em milhares de metros quadrados. Disse, erradamente, que cientistas chamam “equivocadamente a Amazônia de pulmão do mundo”. Não, capitão. Fosse o presidente um pouco mais interessado, saberia que os cientistas chamam a Amazônia de uma bomba de carbono. Se for ainda mais queimada e devastada do que têm permitido as políticas ambientais de seu governo,

Sem falar nas chuvas que deixarão de molhar as lavouras do agronegócio que já se mostra arrependido de tê-lo apoiado.

O presidente atacou a imprensa internacional, atacou importantes parceiros comerciais do Brasil, atacou o cacique Raoni. Não satisfeito, atacou as ONGs por, em suas palavras, “tratar os índios como homens das cavernas”. Atacou a ONU, anfitriã que o sediava naquele momento e permitia que proferisse seu discurso. Disse que a Organização das Nações Unidas não deveria servir aos interesses globais, como se os interesses globais do século XXI se resumissem ao colonialismo de priscas eras. Os interesses globais dizem respeito aos direitos humanos, às preocupações com as mudanças climáticas, às medidas para combater a desigualdade, às políticas para progredir no desenvolvimento sustentável das nações. Mas nada disso é registrado na ideologia que move o capitão. E a ideologia o move por completo, ao contrário do que diz.

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