sábado, 13 de julho de 2019

O mel do afeto

Tá difícil escrever ou ser feliz. Essa sensação de luto quase diária, a perda de tudo que já fomos e tivemos um dia: a alegria, a autoestima, a boa imagem que conseguimos lá fora, a certeza de dias melhores, o orgulho da brasilidade que nos mantinha erguida a cabeça. Hoje abro o jornal pressentindo a dor, a vergonha, a derrota diante de tanta injustiça e cinismo impunes. Dizem que somos minoria porque não somos ouvidos. Alguns morrem por causa disso, outros adoecem e há, ainda, os que se alienam (ou migram) para sofrer o mínimo possível. Quem não pode, fica e convive com o país que virou o paraíso dos medíocres, a república da ignorância, o antro de representantes que não nos representam, o reino do poder que se locupleta, manipula informações e se vinga dos opositores. Dei pra sentir náuseas frente a bandeiras, camisetas, esferográficas, chinelos, gestos manuais e tudo o que lembra o que gostaria que nunca existisse. Comecei a pensar na morte com mais frequência, comprando remédios e comida em pequenas quantidades, por não saber se sobrevivo até amanhã. E o corpo reage, inflamando juntas, turvando a visão, irritando a garganta que só faz engolir sapos. Então recorro ao mel do afeto. Sigo com ternura o voo dos pássaros, a elegância dos gatos, o nascimento de uma flor, cerco-me de poesia e música, busco comédias na tevê, brinco de alquimista cozinhando, canto, rezo, visito a família, troco abraços. Diante da partida de tanta gente boa, penso que o lado de lá está bem mais interessante que aqui. Quando chegar minha vez, vou lamentar deixar de ver o mar, ouvir vozes queridas, receber agrados do destino, driblar os desafios do azar. Mas estarei livre deste pesado fardo que é ser diferente entre tantos iguais, manter a lucidez em plena letargia coletiva, e quem sabe me sentirei finalmente em casa e em paz. Uma preocupação secreta tem me atormentado: a possibilidade de, em mais um delírio de vaidade, aquele que se diz ingênuo estampar o rosto em notas e moedas, como fizeram imperadores e ditadores. Será que aguento?…
Madô Martins

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