segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Os dois cavaleiros do apocalipse

Engana-se quem pensa que o fundamentalismo político é privativo dos que se identificam como “de esquerda”. Agora, nos escombros deixados pelo furacão Dilma Rousseff, surgiu um fundamentalismo que se apresenta como “de direita” e que àquele se assemelha em certos aspectos cruciais. Refiro-me ao bolsonarismo.



O fundamentalismo de esquerda, cujo principal representante entre nós é o petismo, prometia conduzir-nos ao paraíso terrestre da sociedade sem classes. O bolsonarismo promete passar o País a limpo com uma só cajadada, livrando-o do crime, da corrupção, do patrimonialismo e do corporativismo. Assentado sobre uma crença infantil num big-bang primordial, num imaginário quilômetro zero, isento de marcas negativas deixadas pela História, ele se propõe, como objetivo, a refazer o País de alto a baixo. A questão de fundo é de uma clareza meridiana. Esse novo fundamentalismo surgiu entre os escombros deixados pelo furacão Dilma Rousseff. Juntos, o colapso econômico e a corrupção sistêmica aguçaram o desejo de mudança. Agora todos querem (queremos) mudanças profundas, enérgicas, abrangentes - o que é ótimo. Mas daí ao mito romântico do big-bang primordial e aos mantras do “governo forte” e do “salvador da pátria” vai uma grande distância.

Assim como o fundamentalismo esquerdista, o bolsonarismo tende ao pensamento mágico, com certo cariz totalitário. O que lhe escapa, e é a pedra angular da filosofia liberal-democrática, é que todos os governos têm sua ação necessariamente limitada pela realidade social. Mais ainda no regime democrático, a política é sempre e necessariamente uma atividade com fins limitados. A “refundação radical” e o quilômetro zero não passam de piedosas lorotas. Essa limitação fundamental se deve, desde logo, à escassez, ou seja, ao montante sempre insuficiente dos recursos que um governo é capaz de mobilizar a fim de resolver de forma cabal os problemas que considera prementes. Exemplifico: o Brasil reinveste anualmente 16% de seu PIB; a China reinveste 40%, cresce a taxas persistentemente superiores à média mundial e, mesmo assim, ainda abriga um oceano de pobreza.

O candidato Jair Bolsonaro dá a entender que resolverá o problema da violência facilitando o acesso do cidadão comum a armas de fogo. Uma resposta pífia, já se vê, para o crítico problema que adotou como carro-chefe de sua propaganda. Mas, antes disso, aí pelo menos há uma variação. Curioso seria se sua solução consistisse tão somente em mandar o Exército, providência que o presidente Michel Temer pôs em prática no Rio de Janeiro desde o início deste ano, com resultados reconhecidamente modestos. Também aqui não descabe especular que o candidato Bolsonaro não consegue enxergar além dos estritos limites do pensamento mágico. Parece crer que os criminosos são uma parcela fixa da sociedade, bastando, pois, aniquilá-la para que o crime como tal desapareça. É exatamente assim, aliás, que uma proporção elevada dos seguidores do deputado Bolsonaro vê a influência do pensamento de esquerda no Brasil.

Sim, claro, há um esquerdismo amplamente difundido no País, nisso nada havendo de novidade. Nas universidades e até em parte do ensino médio, professores e estudantes curtem o embalo do “socialismo”, em geral sem saber direito do que estão falando. No clero, também: desde a Conferência Episcopal de Medellín (1968), a CNBB passou a se comportar praticamente como uma linha auxiliar do PT. Na imprensa também sempre houve comunistas, bastando lembrar que o sucesso das novelas da Globo se deveu inicialmente ao talento artístico de alguns deles. Mas daí a dizer que estamos na iminência de uma revolução “bolivariana” vai uma grande distância.

Não acredito que Jair Bolsonaro compartilhe o tosco entendimento da esquerda presente no imaginário de muitos de seus adeptos. Na hipótese de se tornar presidente, não o vejo como um projeto de herói solitário, tentando sozinho erradicar uma tradição política tão profunda e complexa. O esquerdismo tende a perder força, mas paulatinamente, pela ação dissolvente do próprio processo democrático e dos imperativos da modernização econômica. Sabemos todos que o petismo surgiu há três décadas e meia, antes do colapso da URSS, já como uma ideologia moribunda. O grande sucesso que logrou no Brasil se deveu em parte à condutibilidade atmosférica do esquerdismo que já tínhamos e, principalmente, à imprecisão enganosa de sua tese principal, a de “um socialismo ainda por construir”. Atacá-lo frontalmente é um atalho seguro para trazê-lo de volta ao ringue, com suas noções arcaicas de economia, cuja capacidade destrutiva Dilma Rousseff demonstrou à saciedade.

Outro traço característico do fundamentalismo presente no atual debate político é a verborragia antipolítica, quero dizer, o devaneio de liquidar a “política tradicional”. Explícita ou implicitamente, esse é o discurso de candidatos que não conseguiram formar alianças e se valem desse caminho para criticar o apoio do chamado Centrão ao candidato Geraldo Alckmin. Supondo, para argumentar, que haja sinceridade nesse discurso, a preliminar óbvia é como pretendem formar uma base no Congresso Nacional. Um presidente com tal perfil optaria por governar e aprovar reformas sem dispor de maioria? A questão suscitada é importante, mas o silêncio embutido nas respostas é de estourar os tímpanos, como diria Nelson Rodrigues. É também o fato, inegável, de a chamada “política tradicional” ser o vestuário externo do velho patrimonialismo, conservado em formol e reforçado por nossa esdrúxula estrutura política, que cedo ou tarde terá de ser reformada.

Reformas, eis o nome do jogo. Com persistência e habilidade, é possível efetivar reformas que cortem o tubo de oxigênio do patrimonialismo.

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