sábado, 29 de setembro de 2018

O que o marxista Daciolo relembra à esquerda

O debate desta última quarta-feira seria mais um ritual protocolar altamente ensaiado, não fosse pela figura elétrica do Cabo Daciolo. O bombeiro catarinense mais uma vez carregou sua Bíblia para o púlpito, de onde metralhou adversários com uma retórica de esquerda na embalagem mais conservadora que seu forte sotaque carioca permite. Cometeu um absurdo matemático, é verdade, ao encontrar 400 milhões de miseráveis num país de 210 milhões de habitantes. Mas será lembrado como o homem incandescente que disse algumas verdades necessárias, aqui e ali, a candidatos de um establishment identificável.


É improvável que Daciolo se reconheça de esquerda – sua denúncia da Ursal e do Foro de São Paulo, no primeiro debate da campanha, pareciam vindas de um curso do filósofo ultradireitista Olavo de Carvalho. Sua admiração por Jair Bolsonaro é conhecida. Sua primeira aventura eleitoral, no canhotíssimo PSOL, foi rapidamente abreviada quando o deputado eleito quis emendar o introito da Constituição, que atribui todo o poder ao povo, e não a Deus. Hoje, concorre pela legenda que se apresenta com o sugestivo timbre de Patriota, embora tenha sido fundada como Partido Ecológico Nacional.

Tudo isso confunde a percepção de quem é o cabo. No entanto, basta ouvi-lo para compreender que há um clássico marxista cristão falando, o que torna seu batismo pelo PSOL cada vez mais compreensível. Não faz muito tempo, o candidato do partido em 2010 era Plínio de Arruda Sampaio, tão católico quanto marxista. E quantas vezes não se ouviu a senadora Heloísa Helena pronunciando vociferações extraídas diretamente do livro bíblico do Apocalipse, na época em que reivindicava para si os holofotes no partido?

Costela de um PT fundado também por padres e frades, o PSOL ateu é um parâmetro recentemente atualizado, uma modernização exigida pela militância classe média que tenta se afastar do pentecostalismo enquanto abraça identidades de gênero. A religião passou a ser algo incômodo para a canhotagem política, obviamente porque se opõe a militância feminista (leia-se pró-aborto) e LGBT. Essencialmente cristã no seu sonho de uma sociedade igualitária, a esquerda passou a esconder suas origens e as entregou de mão beijada para a direita, que se apropriou da identidade cristã, dando-lhe roupagem mais conservadora: sai o Cristo cabeludo dos universitários ripongas, entra o pastor em ternos sóbrios. Embora o eleitor pobre continue sendo alvo fundamental para as campanhas da esquerda, ele se torna menos interessante quando se assume evangélico, mesmo que seja negro. Por mais digno e honroso que seja batalhar pelas sofridas minorias sexuais, esse rearranjo de prioridades cobra um preço. Hoje, parte desse custo se chama Bolsonaro.

Embora inviável politicamente, Daciolo é um lembrete do que a esquerda perdeu: a capacidade de comunicação direta com aqueles que têm de se preocupar com a família e contam com uma fé para atravessar os dias. No debate de quarta-feira, o cabo foi urgente na defesa dos pobres (luta de classes), na denúncia dos serviços de saúde pública, na igualdade salarial entre os gêneros (tema dificílimo para Bolsonaro, por exemplo) e no repúdio à corrupção. Costumava ser o discurso clássico do PT, fora a parte em que "Deus está no controle". Daciolo também difere de Bolsonaro por ser contra a facilitação de porte e posse de armas, embora pensem bem parecido a respeito de educação sexual nas escolas.

O bombeiro-profeta terá poucos votos, porque jejua demais e faz campanha de menos. Mas, se um dia o socialismo identitário quiser se reconciliar com o eleitorado evangélico de baixa renda, Daciolo dará um excelente consultor.
Márvio dos Anjos

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