terça-feira, 25 de setembro de 2018

Delinquência fardada, salvação togada

Quem poderá nos salvar de nós mesmos? Duas figuras suspeitas têm disputado esse posto messiânico no país: o general e o juiz. A grande ironia da cruzada purificadora é ela ter sido abraçada por duas das instituições estruturalmente mais corruptas da história brasileira. Judiciário e Forças Armadas, equipados por ferramentas antirrepublicanas de chantagem e manutenção de privilégios rentistas e dinásticos, miram seu raio despolitizador no processo de competição democrática. As eleições já não correm sob a fiscalização regular da Justiça, mas sob tutela. Os guardiões já avisaram que não aceitarão qualquer resultado. Comporte-se.


De um lado, a delinquência verbal dos homens de verde: alertam que os “profissionais da violência” são eles, não um psicopata ou extremista qualquer; lançam dúvidas sobre as urnas eletrônicas, pois não passam por auditoria; recordam que “as Forças Armadas são disciplinadas, mas não estão mortas”; mandam recados públicos ao tribunal mais alto do país para que este não saia da linha (não é por acaso que no gabinete do novo presidente do STF hoje mora um general). Sua forma de participar costuma ser pela ameaça de intervenção, pela prática da intervenção e agora pelo caminho ilustrado da disputa eleitoral. Mas, como um já disse, se pelo voto não der certo e houver cheiro de anarquia no ar, que seja pela força.

De outro lado, a verborragia salvacionista dos homens de preto: Luiz Fux, o mesmo que forçou a nomeação de sua jovem filha como desembargadora no Rio de Janeiro e há anos batalha pela manutenção do auxílio-moradia ilegal de juízes, afirmou, sem corar, que “só o Poder Judiciário pode levar nossa nação a um porto seguro”. A toga também aceita condecorações oferecidas pela farda, mesmo quando esta a ameaça via Twitter: só no ano passado, três ministros do STF receberam a Medalha da Ordem do Mérito Naval das mãos de ninguém menos que Michel Temer. A harmonia entre os Poderes nem sempre se dá em favor do interesse público.

General e juiz prepararam, juntos, o caminho para um candidato que normalizou, no discurso político, os verbos fuzilar e metralhar e cujo herói apreciava torturar mães nuas na frente de filhos pequenos. Não é qualquer torturador que sobrevive a essa tortura sem perder o autorrespeito. Limparam também o caminho para uma terceira categoria de purificador, o gestor apolítico. É aquele que está na política, mas não é político, que encarna o “idiota da objetividade” e luta por um mundo em que, como numa empresa, os ideológicos não têm vez. Não lhe entra na cabeça que seu sonho de consumo já não se chama mais “democracia” nem que o público é distinto do privado. Romper essa fronteira, mal sabe ele, chama-se corrupção, aquela que ele detesta.

Juízes têm dito que nada mais fazem que aplicar a lei: observe quando, como e a quem. Comece pelo quando. Generais dizem defender a nação: para entender de que nação se trata, dê só uma olhada em seu currículo, nos relatórios das comissões da verdade espalhadas pelo país ou, se não confiar, nos documentos da CIA (agência de inteligência americana). Dessa nação nem todos podem (ou querem) ser sócios. Para Elio Gaspari, “quando se sabe o nome de generais, algo estranho está acontecendo”. Quando se sabe o nome de tantos promotores e juízes, também.

A “teoria da depuração” que os orienta é de autoria de gurus do calibre de Janaina Paschoal e do candidato Mourão, o “desajustado”, para emprestar seu próprio vocabulário. A fantasia distópica governada por pessoas “de bem”, credencial moral autoconcedida, está voltando.

Lembrar-se da história é para os fracos, desconfiar para os preguiçosos, resistir para os ignorantes. Prometem nos entregar, de bandeja, um mundo mais limpo da política.

Nós não vamos pagar nada. Só precisamos deixar com eles, sem reclamar. Ou então nos juntar ao time. Esse mundo não terá partido: escola sem partido, opinião sem partido, roupa sem partido. Menos praça pública e feira livre, mais condomínio fechado e shopping center; menos escola e SUS, mais cadeia e arma de fogo; menos barulho, mais silêncio; menos diferença, mais conformidade.

Decisões democráticas pedem autorização popular.

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