sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Teorias conspiratórias, dois pesos e duas medidas

Não repita isso perto das crianças, por favor, mas o ex-deputado federal Eduardo Cunha, que foi cassado no ano passado e habita atualmente uma cela de cadeia, tem razão. Não conte para as crianças, mas o ex-senador Delcídio do Amaral, cassado por unanimidade também no ano passado, também tem.

Depois que o Senado Federal, na semana passada, livrou a cara do senador Aécio Neves, devolvendo-lhe o mandato do qual ele tinha sido suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, tanto Cunha como Delcídio se declaram injustiçados. Os dois alegam que teriam direito de receber o mesmo tratamento. Nenhum deles é campeão de ética, como todos sabemos. Nenhum deles pode ser tomado como um modelo de transparência e de impessoalidade no trato com a coisa pública. Nenhum deles tem a reputação ilibada que se exige daqueles que podem pontificar sobre assuntos da Justiça. Mas, ao menos nessa parte, eles têm motivos para protestar.


Tudo bem que, na política brasileira recente, essa história de parlamentares, ministros e governantes se dizerem perseguidos perdeu toda a credibilidade. Todos os tais homens públicos que têm problemas com a polícia vestem imediatamente o papel de vítima e se põem a protestar contra as conspirações terríveis que os sabotam. Consta que um deles, o ex-ministro Geddel Vieira Lima, tem desempenhos dramáticos notáveis, chegando mesmo a verter lágrimas autênticas em depoimentos plangentes. Lula e seus assessores repetem o tempo todo que há um complô partidarizado envolvendo policiais, procuradores, juízes e jornalistas com o único objetivo de tirá-lo da cédula nas eleições do ano que vem. É um inocente perseguido.

O chefe de Estado Michel Temer faz muxoxos no mesmo diapasão: teria sido alvo de uma traiçoeira molecagem do ex-procurador-geral, obcecado com a ideia de derrubar o presidente da República. Temer acusa de estar conluiado com o ex-procurador um empresário de nome Joesley, a quem agora chama de bandido, e que, até anteontem, era seu amigão do peito. Esse bandido (ou empresário), de gravador no bolso, registrou tenebrosas e cavernosas inconfidências de Temer. Gravou suas falas vagas e, principalmente, gravou seus silêncios mais do que comprometedores. Entremeados de “ahams” e “hums”, os silêncios de Temer dizem mais que mil palavras. A fita de Joesley é explosiva menos pelo que Temer diz e muito mais pelo que Temer escuta sem demonstrar a mínima contrariedade.

Aécio também posa de mártir, como um São Sebastião ensanguentado, ele que também foi gravado pelo mesmo empresário (ou bandido) dizendo que só confia em quem pode mandar matar. Ou, em suas próprias palavras: “Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação”. Talvez Aécio prepare uma autobiografia: “O injustiçado que falava palavrões”.

O interessante é que tantas teorias conspiratórias se anulam umas às outras. É cartesianamente impossível que as mesmas instituições que se articulam em complôs inomináveis para derrubar Lula sejam as mesmas que planejam na calada da noite a derrocada desumana de Temer, que urdem a ruína cruel de Aécio, que maquinam a condenação injusta de Geddel, que preparam a desgraça imerecida de Delcídio e a malhação interminável de Cunha. Cada condenado, cada réu, cada investigado tem sua própria teoria conspiratória. Como cada uma contradiz as demais, o ridículo de todas acaba aparecendo com a clareza de uma prova documental. São todas ridículas.

Fora isso, num ponto, ao menos num ponto, Delcídio e Cunha têm sua razão para se indignar. “Há provas de que Aécio é culpado”, declarou Delcídio em entrevista à Rádio Guaíba, de Porto Alegre, na quarta-feira (18). “Infelizmente, acrobacias jurídicas livraram a cara do Aécio Neves”, prosseguiu. “No meu caso, nem uma perícia dos áudios foi realizada. Não pude me defender.” Delcídio do Amaral pode estar errado em muita coisa que fez, mas tem legitimidade para se sentir passado para trás. Existe algo de dois pesos e duas medidas no ar.

Eduardo Cunha preferiu se manifestar num artigo, publicado na quinta-feira (19), no jornal Folha de S.Paulo. O texto que ele assina é enroladíssimo e se perde num cipoal de minhocagens supostamente jurídicas que mais confunde do que esclarece as coisas, mas, em resumo, Cunha protesta por não ter podido levar ao plenário da Câmara uma decisão do Supremo que o afastou do mandato e da presidência da Câmara. Por que Aécio pode e ele não pôde? Nessa pergunta, ele tem um ponto. Outra vez, existe algo de dois pesos e duas medidas no ar. Só não vá dizer para as crianças que Eduardo Cunha está certo. Elas podem entender errado.

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