Quando foi a última vez que você foi xingado? Não por barbeiragem no trânsito. Quando alguém, estranho ou até conhecido, apontou para a sua pessoa em público e despejou epítetos do mais baixo calão? Ou lhe acusou de algo que coloca em dúvida sua integridade pessoal e profissional? Se esta pergunta tivesse sido feita há dez anos, ainda provocaria alguma estranheza. Hoje, pode provocar um suspiro resignado.
Hostilidade, insultos e fabricações como, você se vendeu a um partido ou empresa, são moeda corrente em toda parte onde as redes sociais substituíram radicalmente o diálogo oral e o debate impresso. Mas, tendo observado a polarização norte-americana por dever de ofício, cresce minha desconfiança de que os corvos que aqui grasnam não grasnam como lá.
Outro dia caí no gosto de um membro da tribo artistintelectual, estes híbridos flâneurs que ignoram grandes injustiças cotidianas, mas, diante de qualquer desafio ao status quo presente, sobem no cavalo branco e marcham rumo a um abaixo-assinado. Ou se juntam a um ato de repúdio, este substantivo que perdeu qualquer vínculo com indignação moral no Brasil.
O tal artistintelectual costumava me tocaiar numa rede social, começou a ser ignorado e, qual criança birrenta, veio dar com a cara barbada na minha timeline em outra rede. E aumentou o volume, afirmando que meu ganha pão depende de falar mal do governo. Além de me difamar, sugeriu que sou obtusa porque, qualquer um sabe, há um soldo muito mais garantido para quem se dispuser a só falar bem do atual governo.
Minha geração teve uma forma de inocência prolongada pela ditadura militar.
Crescendo à sua sombra, alimentamos a falsa expectativa de que, no fim do túnel, além de liberdades, haveria independência. O artistintelectual de abaixo-assinado, não raro, vem nos lembrar que liberdade não resulta em independência de pensamento.
No desconsolo que marcou o segundo mandato de George W. Bush, quando o trágico fiasco do Iraque já se mostrava irremediável e os Estados Unidos se aproximavam da maior recessão desde a Grande Depressão, a mídia de direita exemplificada por Rupert Murdoch e sua Fox News vivia numa bolha de negação, clichês e conspirações como a do Obama muçulmano. Um assessor político de Bush chegou a chamar um jornalista do New York Times de “membro da comunidade baseada na realidade.”
Agora que o Palácio do Planalto se transformou num galpão improvisado de comícios partidários, em que rituais de Estado são interrompidos por gritos orquestrados, estamos diante do dilema que, nos Estados Unidos, foi oferecido pela direita.
Não há equivalência de argumento se o seu interlocutor só debate com palavras de ordem e ameaça quebrar, invadir, incendiar. O liberal – não o neoliberal do besteirol dogmático – o liberal moderado é, por definição, alguém que acredita na complexidade do mundo e na nuance das ideias. Se colocamos de lado, por um momento, a legalidade ou sensatez da divulgação dos grampos de Lula, e não dá para apagar da memória o que ouvimos, o que ouvimos é assustador. Como dialogar com gente que, depois de 13 anos no poder, ainda pensa e se expressa daquela forma?
O desconsolo que noto entre brasileiros conscientes da complexidade do momento e reincidentes da civilidade se assemelha ao que notei aqui antes, embora, é claro, a democracia constitucional dos Estados Unidos seja mais longa e estável. Um importante colunista conservador norte-americano confessou recentemente que está com saudades de Barack Obama. Não concorda com ele politicamente, mas diz que já sente falta de sua integridade, temperança e da exigência de se cercar de gente honesta.
Enquanto governa o Brasil de uma suíte de hotel, sem mandato ou cargo eletivo, um homem destemperado sabe que não deixará saudades entre os que não pensam como ele.
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