A iconografia do século 19 mostra à exaustão a ocupação “caseira” do espaço público. Escravos em torno das fontes que congregavam os não cidadãos. Os “pobres”, como até hoje os chamamos numa categorização cultural segmentada na qual todos nos encaixamos e que se repete de modo segmentar, não existem sem os ricos. Ha, pois, “pobres” entre os “ricos”, e “ricos” entre os “pobres”. Eis uma divisão perene, já que em todo lugar nos hierarquizamos. A igualdade produz a desigualdade e há rua na casa e casa na rua. Até mesmo no Congresso Nacional, onde todos são “excelências”, há um “alto” e um “baixo” clero!
O trabalho só virou categoria quando criamos um mercado livre da escravidão e a consciência de um “serviço público”. Foi, provavelmente, a gramática do socialismo que condensou essas profissões no papel de “trabalhador”. Passamos, então, a ler a sociedade como constituída de “classes sociais”, tentando colocar no fundo as velhas categorias. Agora, “senhores” eram “patrões”, “chefes” e “diretores”, num mundo republicano mais individualizado.
Mas, até hoje, temos empregados domésticos que passam de pai para filho e são membros ativos senão queridos da casa, embora não sejam da família. Alguns chamam isso de “paternalismo”, mas nenhuma categoria define exclusivamente um sistema. No caso do escravismo brasileiro, o regime republicano fundiu ex-escravos com assalariados e com instituições políticas, que tanto entraram na casa, quanto saíram da casa para a rua.
Criou-se uma “ética relacional”, fundada num sicofantismo desenfreado. Práticas capitalistas impessoais e desumanizadoras foram adotadas, mas não se pode imaginar uma separação radical entre o patriarcalismo hierarquizado da casa e as compulsões igualitárias e impessoais da rua e do mercado. O resultado tem sido o populismo e a mentira como parte da “política”.
Chamei isso de “dilema brasileiro”. O viés aristocrático foi reprimido, mas não entramos no universo capitalista, que impessoaliza as relações de trabalho (coisa má) e a igualdade perante a lei (coisa boa). A crise brasileira tem como eixo essa recusa em aceitar o igualitarismo competitivo do mercado, realizando-o debaixo de velhos compadrios de família e, hoje em dia, de incompetência ideológica e recusando com veemência a igualdade. Não percebemos como um lado neutraliza o outro!
O capitalismo não tem epifanias, mas a regra da lei as promove. Seguir a lei é, como ensinou um insuspeito E. P. Thompson, capital. Regra da lei? Perguntaria um marxista ignorante. Como se a lei já nasce tendo um lado? Mas onde, cara-pálida, não há lado?
Numa democracia liberal, a regra da lei é o abrangente que equilibra fortes e fracos. No nosso caso, um governo imoral e uma população incestuosamente assaltada. Sem a lei, é impossível punir e caminhar. A excepcionalidade da Lava Jato é fazer com que a lei seja realmente igual para todos, num país onde abundam os recursos e leniência para os poderosos.
Não é preciso acentuar que a lei é feita para realizar a Justiça, a qual, por seu turno, exige o contraditório, o que não é fácil num sistema marcado pelo esperado perdão dos superiores, que canibalizam seus cargos. Daí o imperativo da institucionalização, que garante legitimidade por meio da imparcialidade. A regra da lei jaz na busca verdadeira dessa distância que, por sua vez, não pode estar sujeita ao tempo. A Justiça não pode tardar num país onde governar transformou-se num dispositivo de poder e de enriquecimento ilícito.
A meu ver, magistrados deveriam manter a velha postura de renunciantes do mundo e evitar a celebrização. Eles só deveriam aparecer “togados” - esse símbolo de uma difícil isenção. Algo admirável num sistema marcado por interesses, mas esperançoso de uma rara vitória da justiça.
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