Uma república não prospera sem o funcionamento pleno de suas instituições, ensina a literatura política e econômica mais moderna. Na sexta-feira, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi coagido a depor à Polícia Federal por conta da Operação Lava Jato houve sinais de que a convivência entre os Poderes no Brasil estava prestes a cruzar uma linha perigosa.
A presidenta Dilma Rousseff manifestou "integral inconformismo" após ver seu mentor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ser coagido a depor à Polícia Federal por conta da Operação Lava Jato. Lula, por sua vez, reivindicando seu legado enquanto presidente, dirigiu as baterias contra os procuradores e juízes que investigam sua relação com os maiores empreiteiros do país. O problema, segundo o ex-presidente, não é a oposição ao Governo, mas “uma parcela do Judiciário brasileiro que está trabalhando com certos setores da imprensa”.
O mundo judiciário de fato não reagiu bem à condução coercitiva de Lula para o posto avançado da Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas. Juristas ouvidos pelo EL PAÍS questionaram o procedimento, classificado como exagerado e até inconstitucional por alguns deles. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse à Folha de S.Paulo que a coerção de Lula foi "um ato de força" e questionou as justificativas utilizadas pelo juiz Sergio Moro para embasar a decisão: "Será que ele [Lula] queria essa proteção? Eu acredito que na verdade esse argumento foi dado para justificar um ato de força. Isso implica em retrocesso, e não em avanço".
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) reagiu, dizendo em nota que a força-tarefa da Lava Jato atua "de acordo com a mais rígida e cuidadosa observância dos preceitos legais, sem violência ou desrespeito aos investigados". Os procuradores argumentam ainda que "a condução coercitiva é instrumento de investigação previsto no ordenamento e foi autorizada no caso do ex-presidente Lula de forma justificada e absolutamente proporcional, para ser aplicada apenas se o investigado eventualmente se recusasse a acompanhar a autoridade policial para depoimento penal".
Exagerada ou não, a condução coercitiva foi autorizada pela Justiça outras 117 vezes ao longo das 24 fases da Operação Lava Jato. A utilização do procedimento para ouvir Lula, portanto, mostra que, apesar do desconforto e dos tumultos que isso possa causar, não foi uma exceção entre os investigados. Em entrevista à BBC Brasil, o presidente da ONG Transparência Internacional, José Ugaz, disse que a investigação contra Lula "mostra que o combate à corrupção não deve levar em conta a importância política ou econômica de ninguém".
A Operação Lava Jato parece ter sentido o impacto das reações. Neste sábado e de maneira inusual, o juiz Sergio Moro divulgou nota para dizer que a condução coercitiva de Lula "não significa antecipação de culpa do ex-presidente" e para "lamentar que as diligências tenham levado a pontuais confrontos em manifestação políticas inflamadas, com agressões a inocentes, exatamente o que se pretendia evitar". O juiz ainda repudiou "atos de violência de qualquer natureza, origem e direcionamento, bem como a incitação à prática de violência, ofensas ou ameaças a quem quer que seja, a investigados, a partidos políticos, a instituições constituídas ou a qualquer pessoa". Mais tarde foi a vez do time de procuradores da Lava Jato se defender também em nota.
Comedido ao comentar a crise e ao mesmo tempo um personagem importante dela, o vice-presidente da República, Michel Temer, disse durante evento com juízes no Mato Grosso do Sul na sexta-feira que o país passa por um "refluxo institucional". "A cada 25, 30 anos, há um refluxo, quase um fatalismo histórico, um fluxo e refluxo institucional, começam a aparecer crises que demandam novas providências do povo brasileiro", registra O Estado de S.Paulo. Fazendo menção ao golpe militar de 1964, Temer disse que o poder Executivo tem uma "vocação centralizadora muito forte" e que, para evitar o rompimento de ciclos históricos, é preciso "mudar as instituições" periodicamente.
Os sintomas de uma crise institucional já vinham sendo sentidos desde que a Lava Jato começou a tocar os altos escalões da República — gerando troca de farpas entre membros do Judiciário, do Executivo e do Legislativo —, e se acirrou quando o Governo perdeu o controle da Câmara, com a eleição de Eduardo Cunha, em fevereiro de 2015. Sem base no Congresso Nacional, Dilma se vê forçada a optar entre fazer as reformas para equilibrar as contas públicas — com os ônus políticos que as acompanharão — e ser fiel à sua base social.
A presidenta talvez estivesse na melhor posição para liderar um processo de estabilização, mas, já abalada pelo turbilhão político, foi diretamente envolvida pela primeira vez nesta semana no enredo da Lava Jato, graças ao vazamento do princípio de um acordo de delação premiada do senador Delcício do Amaral (PT). Não bastasse, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), que já é tratado pelo STF como réu por conta da mesma operação, foi denunciado mais uma vez pelo Ministério Público por irregularidades cometidas no âmbito da Petrobras — a denúncia contra o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), ainda aguarda parecer dos ministros, após ter sido retirado da pauta de julgamentos.
Além disso, o ministro da Justiça deixou o cargo por conta de pressões do partido da presidenta, insatisfeito com os rumos da Lava Jato — no final do ano passado, Joaquim Levy já havia deixado o Ministério da Fazenda por atritos com o PT. Tudo isso ocorre em meio à maior recessão desde os anos 1990 e a perspectiva de um segundo ano seguido com encolhimento da economia. De todo esse caos, pode surgir boa notícia se o Brasil conseguir enfrentar e atravessar todos seus problemas políticos e os Poderes passarem por esse "teste de estresse" sem derrapagens. Se a Operação Lava Jato for um sucesso, o país dificilmente estará em pior condição do que quando ela começou, há dois anos — e isso não será pouco.
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