domingo, 27 de março de 2016

Desacostumados

Se fosse apenas incompetente, quem sabe o governo poderia ser digno de pena, mas, ao fazer da corrupção peça central em seu projeto de poder, cristalizou-se como a maior ameaça a nossa democracia desde a reabertura política, e merece sem ressalvas o inequívoco repúdio das ruas.

De todo modo, levando em conta os discursos recitados pela presidente nos últimos dias, invariavelmente salpicados de ilações grotescas e mentiras deslavadas, fica claro que o PT não capitulará facilmente. Qual é a novidade?

Convenhamos, dadas as circunstâncias, são perfeitamente compreensíveis os chiliques de Dilma e Lula, assim como os destemperos dos grão-mestres petistas e da esquerda macunaíma. Não bastassem as delações que ainda vêm por aí, com o desembarque do PMDB carioca o impeachment nunca foi tão provável.

Podem continuar chamando de golpe o que está previsto na Constituição, movimentar ministros para intimidar a Polícia Federal, ofender tribunais, e irresponsavelmente convocar a militância profissional na tentativa de afugentar as multidões.

Ora essa, podem inclusive manipular o Itamaraty para espalhar boatos, e contar com o vergonhoso apoio de figuras cada vez menores do nosso meio artístico, finalmente corajosas para assumirem suas naturezas autoritárias.

Se nada de espetacular acontecer, seus destinos já estão selados, Wanda será impedida, Luiz Inácio passará um tempo considerável atrás das grades, e ao PT caberá enfrentar uma derrocada tão vertiginosa quanto imprevisível.

Pois, anotem aí, a debacle petista diverte, a sombra do próximo salvador da pátria assusta, a crise econômica apavora, e no entanto deveriam alarmar menos do que as críticas direcionadas ao chamado Fla-Flu.



Percebam, longe de mim querer diminuir a gravidade do atual cenário, porém não me parece sensato constranger o que possivelmente há de mais positivo em tudo o que está acontecendo.

E basta assumirmos nossa condição de sociedade historicamente despolitizada para percebermos que asfixiar o debate, quando finalmente ele começa a acontecer, não faz o menor sentido. A não ser, é claro, que a proposta seja de continuarmos servindo como massa de manobra.

Além de paternalista, flerta com o bizarro este afã em arrefecer os ânimos de uma discussão impossível sem algum grau de excitação. Principalmente quando culpa o alarido por desavenças entre amigos e desfalques em grupos de bate-papo. É aquele negócio, um pouco de perspectiva é sempre recomendável.

E, por favor, nada de entrar no mérito da elasticidade inerente ao termo “excitação” no entendimento dos raivosos. Esta é uma questão já delimitada pela lei, e desfiá-la apenas serviria para estimular ainda mais nosso equivocado costume de adequar a sociedade ao criminoso.

Sim, o fanatismo que transforma a troca de ideias em troca de acusações incomoda, e pode até emburrecer em um primeiro momento, mas é a única saída para uma lenta e necessária transformação.

Sim, a dicotomia entre PT e PSDB é uma mitologia, assim como o fictício apartheid alardeado por uma turma acostumada a propagandear-se moralmente superior.

Sim, o debate é um pau que nasceu torto, e rio de mim mesmo ao escrever estas linhas, de tanto que resmungo por aí, praticando com desenvoltura os mesmíssimos pecados que agora ilumino.

Preciso admitir, eu também não estou acostumado.

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