segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Tristes trópicos

A nação irrompera no século 21 com motivos de sobra para andar de cabeça erguida. Um líder amado e representativo de sua gente fora eleito em pleito histórico, injetando gosto por democracia e apetite por cidadania aos redutos mais esquecidos do vasto território. O resto do continente olhava para esse Bric emergente com um misto de curiosidade, e que até mesmo Copa do Mundo abrigou!

Hoje orgulho e esperança se esfarelaram. “Estamos rumando para um Estado predador, onde uma elite poderosa, corrupta e demagoga de hienas políticas usa cada vez mais o Estado para enriquecer”, acusa um sindicalista histórico. “Estamos traindo os mais pobres, parece pacto com o diabo”, acrescenta outro companheiro.

Estamos falando da África do Sul, é claro.

Dias atrás, após anos de escandalosas tergiversações e delongas, o presidente Jacob Zuma achou prudente aceitar devolver pelo menos parte do dinheiro público que gastou na reforma de sua residência. Dessa forma ele tenta encerrar um processo judicial cuja audiência está marcada para esta terça-feira e que arrasta seu corrupto governo ladeira abaixo.

Charge que gerou processo de Zuma contra o The Sunday Times

No continente africano, abusar de fundos públicos para erigir mirabolantes domínios privados costumava fazer parte do receituário de cleptocratas ditatoriais como Jean-Bedel Bokassa ou Mobutu Sese Seko. “O Grande Leopardo” Mobutu, por exemplo, que reinou no antigo Zaire (hoje República Democrática do Congo) por 32 anos, tinha uma Versalhes privada na selva de Gbadolite com aeroporto capaz de receber aviões Concorde, um bunker nuclear para 500 pessoas, vários palácios e um elaborado complexo de pagodes construído por chineses.

Bokassa, o autoproclamado imperador da República Centro-Africana, cuja cerimônia de coroação foi tão extravagante que consumiu algo como um terço do orçamento do Estado, manteve-se no poder por 13 anos. Já o tirano-mor de Uganda Idi Amin, que enviava telegramas à rainha Elizabeth II da Inglaterra tratando-a de “Liz”, costumava chegar a reuniões de cúpula do Commonwealth em cima de um andor carregado por quatro esquálidos caucasianos.

Mas a África do Sul democrática do pós-apartheid que emergiu orgulhosa junto com seu fundador Nelson Mandela em 1994 tinha outros parâmetros e lições de retidão a dar ao continente. E de início assim foi. A erosão veio com o apego à máquina do poder pela elite do histórico Congresso Africano Nacional pós Mandela. Lambuzaram-se, diria o ministro Jacques Wagner. E o atual presidente Jacob Zuma, no poder desde 2009, está enterrando de vez o que resta da confiança tão duramente conquistada pelo país.

Não é de hoje que ele se vê enredado em acusações pesadas de corrupção, tráfico de influência, lotação de cargos para apadrinhados, estelionato e até mesmo um caso de estupro, dos quais sempre conseguiu escapulir. O que nunca sumiu da lupa da Defensora do Povo, cargo equivalente a um ombudsman dos cidadãos, foi a tal reforma “de segurança nacional” iniciada em sua residência particular pouco após tomar posse.

Foram adicionados um conjunto de edificações de estilos e formas variadas, uma piscina, um heliporto, um anfiteatro, um centro de recepção com cúpula, um estábulo para gado e um galinheiro — tudo em nome da segurança do chefe da nação e em meio à paisagem rural e paupérrima de Nkandla, sua terra natal, na província de KwaZulu-Natal, uma das mais desoladas do país. Ali, apenas 10 mil domicílios têm energia elétrica, 7 mil não têm água encanada e dos cerca de 120 mil habitantes da região mais de 40% estão desempregados.

O terreno agora ocupado por Zuma equivale a oito campos de futebol e a reforma engoliu o equivalente a 246 milhões de rands (equivalente a R$ 60 milhões), enquanto o upgrade do último governante branco do país, F. W. de Klerk, custara 236 mil rands uma década antes.

A primeira tentativa de fazê-lo responder a processo fracassara devido à imaginativa defesa das reformas encaminhada pelo ministério da Polícia. Um bombeiro chamado a depor afirmara que a piscina representava “a melhor fonte de água disponível para abastecer as bombas em caso de incêndio de grandes proporções”. O anfiteatro fora necessário para prevenir a erosão do solo por onde circulam os pesados veículos blindados, o centro de recepção poderia ser necessário para abrigar a grande família do presidente polígamo (ele tem 20 filhos) em caso de emergência, estábulo e galinheiro têm “valor espiritual”.

Só que a Defensora do Povo Thuli Madonsela manteve a pressão. Titular do cargo instituído pelo Artigo 181 da Constituição de 1996 e cuja indicação é feita pela Assembleia Nacional, ela se sabe amparada pela indignação popular. O relatório 2015 da Transparência Internacional com a rede Afrobarometer aponta a África do Sul, seguida de Gana e Nigéria, como o país africano em que a corrupção é citada como tendo piorado mais ao longo do último ano.

Jacob Zuma, o menino zulu que cuidava de rebanhos, frequentou a escola apenas por alguns anos e não recebeu nenhuma educação formal além do primário, engajou-se cedo na luta pela sua gente e tornou-se um competente líder do Partido Comunista sul-africano e do ANC. Não foi por acaso que penou dez anos na prisão de Robben Island ao lado de Nelson Mandela. Sempre teve sintonia fina com o homem do povo, em contraponto com seu antecessor mais austero, Thabo Mbki. Pena que tenha perdido o rumo quando o caminho ficou fácil.

No ano em que o movimento de libertação comemora 104 anos especula-se se o presidente de 73 anos conseguirá chegar ao término de seu segundo mandato, em 2019.

Uma declaração de Ronnie Kasrils, ex-ministro dos Serviços de Inteligência, ao jornal “The Guardian” dois anos atrás, diz tudo: “Mais importante do que o partido são as ideias do partido. São elas que devemos defender. Se o partido esquece essas ideias, vamos ficar do lado do povo que exige o que lhe prometemos a vida toda — uma vida melhor. Não podemos ficar calados quando vemos esses crimes de corrupção.”
Dorrit Harazim

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