terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Um buraco à espreita da América

Kurt Gödel, de origem austro-húngara, foi um dos maiores matemáticos do mundo moderno. Demonstrou a incompletude dos sistemas axiomáticos, inclusive da própria matemática, que comportaria falhas. De sua atribulada história pessoal consta o episódio conhecido como "buraco de Gödel": na solenidade de sua naturalização americana, ele quis apontar um buraco lógico na Constituição dos EUA que abriria caminho para uma ditadura. Foi contido pelo padrinho Einstein e pelo juiz, que o teria mandado calar-se. Nunca mais voltou ao assunto, jamais se soube onde estaria o furo.


A realidade é que essa Carta resulta de um país fundado por intelectuais como Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, John Adams e outros citados como "founding fathers". Segunda proclamada no mundo, em 1787, é também a menor existente, com cinco capítulos e 27 emendas. Uma simplicidade aparente, pois é a mais difícil de acolher emendas, o que explicaria a persistência de vieses antidemocráticos. Feita em nome da liberdade, passou ao largo da abolição da escravatura. Seu principal cuidado é o equilíbrio entre o poder central e o dos estados, cerceando eventuais inclinações autocráticas por um sistema de contrapesos,

Uma coisa é o formalismo de um sistema, outra a sua inserção numa forma de vida. No fluxo vital é que as palavras ganham pleno sentido e aparece a diversidade radical dos indivíduos em meio à sua aparente semelhança. Isso era significativo quando a união constitucional não destoava dos discursos civis nem de como a mídia figurava a cidadania americana.

Tudo começou a mudar desde os anos 60 com a crescente percepção de ameaça identitária por parte de grupos sociais. Após forte onda imigratória e profundo rearranjo partidário, os republicanos consolidaram-se como bunker paranoico dos cristãos brancos, da supremacia racial e da reação aos costumes. A intensidade das mudanças, inclusive as demográficas, contribui para a percepção de fenecimento do mito da "verdadeira América".

Trump é fruto maduro dessa transformação. Em qualidades humanas, um fruto podre, ou "brain rot", a expressão do ano. Posto na balança, é uma derivação de presidentes como Reagan, Nixon, Bush, só que com aberrações pessoais expostas. No governo, não assassinou com drones tanta gente como o liberal e simpático Obama.

Nenhum desses brucutus parece ter sequer sonhado em violar a Constituição apregoada pela razão liberal como a mais sólida do mundo. Mas a razão também sonha, diz Goya, e assim "produz monstros". O pesadelo de uma brecha racional para a monstruosidade da ditadura poderia ser o "buraco de Gödel".

Talvez não se precise de furo lógico. Um buraco real já pode estar aberto na civilidade que sustenta a Constituição. A Suprema Corte parece feita de supremos cortesões. E Trump, disposto a testar a resiliência do sistema, aparelha o seu secretariado com o top de linha do sórdido em termos civis e gerenciais. "O horror, o horror", exclama o coronel Kurtz em "Coração das Trevas" e "Apocalypse Now". E trevas justificam a Lei de Murphy: o que é ruim tende a piorar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário