Porém, a língua é uma representação, ela não se esgota na mensagem que enuncia. O politicamente correto acredita que os termos de um idioma contêm a essência daquilo a que se refere, entre as palavras e o mundo haveria uma conjunção harmônica e íntegra. Assim, dizer algo errado é equivocar-se em relação à essência, a correção é necessária para ajustar o desvio pressuposto entre linguagem e realidade. O “cancelamento” decorre desta intenção: isolar o verdadeiro do falso.
Fernando Botero |
Nada há de novo nisso, existem vários exemplos de disciplinarização da língua; é o caso da Revolução Francesa. Os revolucionários procuraram extirpar todos os traços da tradição cristã da vida francesa, a reforma do calendário gregoriano tinha justamente esse objetivo. Os doze meses do ano foram rebatizados (Brumário, mês das brumas; Nivoso, da neve; Pluvioso, das chuvas; Florial, das flores; etc.), os dias da semana redefinidos (primidi, duodi, tridi, quartidi, etc.) e não mais seriam dedicados a nomes de santos (foram trocados por elementos da terra: açafrão, uva, castanha, etc.). Algumas palavras foram também banidas do vocabulário quotidiano, “senhor” e “senhora” sendo substituídos por “cidadão”, manifestação do espírito de igualdade entre as pessoas. Entretanto, o “terror linguístico” (assim foi denominado na época) tinha uma amplitude maior, a emergência do Estado-nação republicano exigia a manifestação da unicidade da língua; os vários dialetos existentes no país foram, portanto, censurados e perseguidos, todos deveriam se expressar em um único idioma: o francês. Afirmava-se a totalidade da nação para se contrapor ao diverso que a ameaçava; como no mito de Babel, a diversidade era uma maldição. No caso do politicamente correto tem-se algo irônico: o ideal da diversidade exige o controle da língua, porém, o diverso é o fundamento da homogeneidade almejada.
Jakobson dizia que uma língua se define pelo que pode e não pelo que permite ou deve dizer, por isso nenhum idioma é superior ou inferior aos outros (muito se escreveu sobre a superioridade do inglês, ele seria capaz de expressar coisas que outras línguas desconheceriam). Na verdade, os idiomas representam o mundo à sua maneira, cada um deles contém uma verdade na qual a linguagem se assenta. Entretanto, toda língua se realiza em contexto (essa é a diferença entre linguagem e língua); nela, o significado das palavras se transforma e se desdiz. A entonação da voz, indicando suavidade ou rispidez, a ironia, a expressão facial de quem fala, constituem elementos que modificam o sentido expresso do que é dito. O contexto é a situação na qual as palavras (diz-se que uma frase foi retirada de contexto) ou os indivíduos se encontram. A linguagem, enquanto estrutura, não garante imediatamente a inteligibilidade da fala (ou da escrita), é necessário que ela se insira numa determinada rede de interação social. A mesma coisa dita em lugares distintos, com entonação distinta, tem significado diferente. Imaginar a existência de um manual da utilização correta das palavras, reduzindo-as a um determinismo militante, é uma quimera. O contexto é história e a história é um destino coletivo, não o monopólio da definição das boas intenções. A riqueza de uma língua exprime-se na multiplicidade de sentidos que ela possibilita dizer, a ternura ou o ódio, a frustração ou a tristeza, a dominação ou a liberdade.
Sempre me intrigou a obra de Botero, com suas gordas e gordos. Não entendia sua intuição estética até visitar o museu de Medellin. Nele existem várias esculturas, mulheres gordas, padres gordos, gatos gordos, burgueses gordos, mesas e cadeiras com bordas arredondadas, vasos redondos, etc. Percebe-se que seu interesse é pelas curvas, o volume das coisas, enfim, aquilo que é esférico, roliço. O universo de Botero é sem arestas, tudo está sinteticamente integrado na sinuosidade das formas. Diante das agruras do real, das contradições, da amargura, o artista imagina uma configuração de elementos que idealmente contrasta sua aspereza. Porém, como todo artista, ele sabe que sua ficção é distinta daquilo que o cerca, o real é ponto de partida para sua imaginação. O politicamente correto padece da tentação do Bem e de uma certa ilusão de ótica, aspira a um mundo no qual a sombra dos objetos se projeta sobre sua própria essência. Suprime-se, assim, o hiato entre a verdade e a dúvida, ser e estar.
Renato Ortiz
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