Ora, a brutalidade da resposta israelita deslegitima a legitimidade da sua autodefesa. Segundo, a retaliação deve concentrar-se sobre os alvos militares e salvaguardar as populações civis. Escolas, hospitais e edifícios residenciais dificilmente podem ser considerados alvos militares. E bombardeios em zonas densamente povoadas e ataques a bairros residenciais não podem deixar de provocar vítimas civis, entre elas muitas crianças. Sabemos que é suposto os militantes das organizações terroristas estarem escondidos nessas zonas, mas haveria certamente outro tipo de operações militares que alvejam os operacionais sem atingir, indiscriminadamente, os civis inocentes.
A destruição militar de uma organização terrorista não pode justificar a punição coletiva de um povo. Em Gaza, como agora no Líbano, a destruição física é devastadora, a crise humanitária é de enormes proporções, há milhões de refugiados e milhares de mortos de civis. No direito internacional, o direito da guerra fixa os limites do uso da força e o direito humanitário o tratamento devido aos não combatentes. Israel não cumpre nem um nem outro. Vive à margem das Convenções de Genebra e, por muito que custe dizê-lo, comporta-se como um “fora-da-lei”. O ataque à operação de paz da ONU no Líbano (UNIFIL) é só mais um episódio desse padrão de comportamento à margem do direito internacional.
A UNIFIL foi estabelecida em 1978, depois da primeira invasão do Líbano por Israel. Era uma força de interposição e tinha um triplo objetivo: confirmar a retirada israelita; ajudar o Governo libanês a restaurar a autoridade na zona; e garantir a segurança e a paz. Em 1982, Israel invade uma segunda vez o Líbano e, até ao termo da invasão, em 1985, a UNIFIL não só fica atrás das linhas israelitas como perde a função de interposição e fica limitada à assistência humanitária. Em 2006, depois da terceira invasão israelita, a resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU não só reforça a força militar como alarga o mandato da missão: manutenção da paz e segurança; confirmação da retirada israelita; assistência no desarmamento e desmobilização das milícias e proteção das populações civis.
Como é óbvio, a UNIFIL não foi um sucesso. Não evitou uma quarta invasão de Israel, como não evitou o reforço político e militar do Hezbollah. Mas tem desempenhado uma função importante de proteção e assistência humanitária às populações.
Na condução das operações militares de invasão, Israel vê a UNIFIL como um empecilho e tem pressionado para a sua retirada. Em tom de poucos amigos, Netanyahu avisou ao secretário-geral da ONU para retirar as suas tropas. Ora, acontece que nem a UNIFIL está ao serviço da estratégia israelita, nem o secretário-geral tem poderes para retirar as tropas. A missão foi estabelecida pelo Conselho de Segurança e só o Conselho de Segurança tem poderes para isso. E, certamente, não o fará. Assim, Israel decidiu remover o empecilho e avançou contra uma base militar da UNIFIL num contexto em que já foram feridos vinte capacetes azuis.
Mas este não é um ato isolado. Faz parte de uma já longa campanha contra as Nações Unidas. E não se trata apenas da violação pura e simples das resoluções da ONU sobre os territórios ocupados. Da UNIFIL ou do Alto Comissariado para os Refugiados. Trata-se dos ataques recorrentes aos órgãos judiciais das Nações Unidas: o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional que têm acusado os dirigentes israelitas da ocupação ilegal dos territórios palestinos e da condução da guerra em Gaza. Trata-se do ataque ostensivo e desproporcionado contra o secretário-geral, declarando-o “persona non grata”. Declaração que, aliás, não se lhe aplica, porque a Convenção de Viena que a prevê aplica-se aos Estados, mas não às organizações internacionais.
Trata-se, enfim, de um padrão de comportamento “fora da lei”. Muitas vezes, a pretexto da defesa do Ocidente. Não, não é. Os EUA e a Europa têm de perceber que não se trata da defesa do Ocidente. Pelo contrário, põe em causa a autoridade moral do Ocidente. A que ainda lhe resta.
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