A etimologia do termo “análise” é formidável para ilustrar aquilo a que se destina, tanto nos labirintos do sintoma do indivíduo quanto nos da cultura: revelar e desfazer a trama inconsciente ou irrefreável que os causa. Não é difícil imaginar sujeitos que não conseguem se livrar de atitudes, vícios e repetições que, não obstante, os prejudicam. Torna-se cada vez mais patente a dificuldade de reverter a violência das guerras e o rumo do aquecimento global, com a deterioração climática e seus efeitos — como os incêndios pelo mundo.
Se o desafio que enfrentamos consiste na missão quase impossível de desfazer a trama econômica, social e política que produz o risco de catástrofe, como nos libertar dessa prisão e desmontar a máquina destrutiva que o progresso material e tecnológico construiu — na crença absurda de que a suposta inesgotável natureza está à disposição apenas para nos servir? Na verdade, não me situo entre os que consideram inevitável o desastre climático, uma nova guerra mundial ou a emergência de outra grave pandemia. Mas é inquietante observar na atualidade a crescente onda pessimista nessa direção.
Talvez porque nunca tenha ocorrido, como nos últimos anos, uma invasão tão intensa de graves acontecimentos assolando a subjetividade das pessoas. Além do mais, está tudo conectado em tempo real. A confiança nas pulsões de vida e na capacidade humana de reverter seu impulso à autodestruição parece diluir-se ante uma época cínica e caótica, em que é inédito o arsenal — de armas, de ódio e de negacionismo — à disposição de uma destrutividade que parece contratar um time invencível.
doriA formidável expansão tecnológica e científica vem se revelando inversamente proporcional à paradoxal regressão civilizatória. Estamos de novo diante de questões que julgávamos ultrapassadas, o que expõe a força das infiltrações subterrâneas que atacam a ética, a democracia, a paz e o respeito entre povos e nações. Tudo se parece com a metáfora que surgiu de um debate entre os filósofos Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut sobre o que é compreender a contemporaneidade: um olhar para um céu cheio de estrelas que já desapareceram, mas cujos brilhos — ou trevas — continuam chegando até nós.
Filósofos e artistas captam sinais e antecipam o desastre. Paul Klee fez uma gravura, em que Walter Benjamin se inspirou, para criar o conceito de anjo da História: uma figura assustada, com as mãos se defendendo da tragédia para a qual o futuro nos arrastaria. A gravura hoje está no Museu de Israel, em Jerusalém. O próprio Benjamin escreveu “Aviso de incêndio”, sobre as graves ameaças de um progresso descontrolado. Sloterdijk fez livro sobre o arrependimento de Prometeu: o ladrão do fogo divino ficaria decepcionado com o que fizeram de sua dádiva. Antes dele, Hans Jonas se referiu ao perigo de um Prometeu desacorrentado e clamou por uma ética que, por meio de freios voluntários, impedisse o poder dos homens de se converter numa desgraça para si mesmos. Antes da série de incêndios, Giorgio Agamben lançou a distopia “Quando a casa queima”. As cidades, as ruas e as casas estão ardendo em chamas:
— Vivemos num mundo que está queimando, mas não sabemos.
Não?
Resta o desafio de desfazer nossa própria trama, desmontar o manto sombrio que vimos tecendo ao longo do que — de forma arrogante —chamamos de progresso. Freud disse que a função da análise é tornar consciente o que não era. Tal função tem hoje o caráter de urgência.
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