sexta-feira, 19 de julho de 2024

A orelha de Trump, o nariz da Cleópatra e uma bola de tênis

Uma bola de ténis voa sobre a rede, num vaivém. Atravessa-a, uma e outra vez, até se deter. Um erro do jogador fá-la descer demasiado. Toca na rede. Por segundos, parece rodopiar sobre a tira branca, indecisa sobre o lado para o qual cairá. É como se sustivesse a respiração. Fica no ar enquanto uma voz fala sobre o poder do acaso e a forma como preferimos ignorá-lo. “O homem que disse que preferia ter sorte a ser bom tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar a que ponto uma grande parte das suas vidas está dependente da sorte”.

A cena é do filme Match Point, de Woody Allen, e tive de ir revê-la depois de um amigo me dizer que se tinha lembrado dela a propósito da bala que só tocou a orelha de Donald Trump de raspão. “Destinos ditados por milímetros”, dizia-me ele, que também se lembrou de Pascal, o filósofo que disse um dia que “se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, toda a face da Terra teria mudado”.


Gostamos de histórias. É através delas que conseguimos ordenar o mundo. E não há histórias sem heróis. “Era uma vez”, dizemos nós. E logo a seguir vem um rei, um pirata ou uma princesa, porque o fio da história precisa de seres excecionais para nos prender. Aquilo que muitas vezes perdemos de vista é que os heróis são símbolos. E os símbolos só são poderosos porque carregam ideias.

Quando Trump, ensanguentado, se levanta do chão e ergue o punho reforça-se como símbolo, torna-se numa estampa de t-shirt, numa capa de revista, numa escultura. Mas se a bala lhe tivesse acertado, o mito teria outras formas de se perpetuar. Nunca a morte venceu um mito. Pelo contrário, a morte cristaliza os mitos, cobre-os com uma capa de eternidade que impede que estalem. E é por isso que ainda falamos do nariz de Cleópatra que nunca vimos.

As ideias são as placas tectónicas que fazem mover o mundo. Trump é já mais uma ideia do que um homem. Ou talvez seja o produto dessa ideia, a encarnação de uma força que se está a instalar no mundo, através da desregulação, de um libertarismo individualista e selvagem, oculto sob a promessa de ordem de um conservadorismo agressivo, que servirá para dar rédea solta a um punhado de poderosos e manter todos os outros sob o jugo da servidão. A morte não o travará.

Se não soubermos perceber os mecanismos que fazem de Trump um símbolo, não conseguiremos nunca combatê-lo. Os homens providenciais não existem. São só uma forma de entendermos o mundo. Quando a morte os leva, o que lhes deu poder encontrará outras formas de persistir, se a semente das suas ideias conseguir encontrar um solo fértil onde crescer.

Então e a sorte? O que vale a sorte? Vale muito. Vale quase tudo para os que não têm poder. O segundo em que abrimos os olhos pela primeira vez é parecido com o momento em que a bola hesita sobre a rede. Cair de um ou de outro lado de uma fronteira, numa ou noutra classe, numa ou noutra família. Esses são os milímetros que mudam tudo. O nariz da Cleópatra é outra conversa.

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