terça-feira, 18 de junho de 2024

Só resta o longo prazo aos gaúchos

O Rio Grande do Sul ainda vive sob o signo da emergência. Vai demorar um tempo para que tudo seja limpo, o básico seja reconstruído e que a vida volte ao normal, com aquela rotina de escola, trabalho e lazer. Embora nem todos tenham sido atingidos do mesmo modo, há um sentimento comum de perda e haverá um empobrecimento maior do que havia antes da tragédia. Com tantas tarefas e problemas ali na esquina, fica difícil vislumbrar o que será o futuro. Mas, para superar de maneira estrutural o imenso desastre que ocorreu, a única saída é construir uma resposta de longo prazo.

Evidentemente que as questões de curto prazo vão dominar, por alguns meses, a agenda gaúcha. Não só porque é preciso reconstituir a economia e a normalidade da vida cotidiana, mas também porque os primeiros passos são importantes para os demais. Uma medida básica é garantir renda às pessoas para que não haja um colapso econômico.


A infraestrutura mais basilar deve ser reconstruída logo, para não inviabilizar todo o restante das atividades. E, mais importante ainda, deve-se definir, o quanto antes, qual será o modelo mais amplo de reconstrução, a ser implementado por um tempo bastante longo.

Em outras palavras, se mil passos começam no primeiro, o início também tem de vislumbrar aonde se quer chegar. Neste sentido, o planejamento da reconstrução vai passar basicamente por duas questões. A primeira diz respeito aos fins, e a segunda, aos meios. Começando pelas finalidades, elas dependem, antes de tudo, de um bom diagnóstico. Mesmo se sabendo da pressa em querer resolver uma situação dramática, não se pode colocar o carro na frente dos bois, o que em políticas públicas significa determinar as soluções antes de identificar claramente e de forma precisa os problemas.

O diagnóstico do desastre passa fortemente pela análise da infraestrutura destruída, sejam as pontes, estradas e mecanismos de contenção de enchentes, sejam as moradias, as empresas e equipamentos públicos (com destaque para as escolas). A reconstrução, porém, não é simplesmente para voltar ao ponto anterior. O principal diagnóstico é que, como há grandes possibilidades nos próximos anos de novos desastres climáticos, será necessário ter um novo modelo de ordenação espacial do Rio Grande do Sul, que significará ter edificações e formas de organização urbana capazes de lidar ou mitigar os efeitos da ação de fenômenos naturais.

Para além de uma nova forma de ordenar o território, o respeito a normas ambientais mais rígidas do que as atuais se tornará um imperativo para o Rio Grande do Sul. Esse diagnóstico é o coração da mudança depois do desastre. Neste momento de desgraça e luto, talvez a grande maioria já concorde com essa necessidade. Só que não custa lembrar como o passar do tempo pode levar ao desejo de se voltar à realidade anterior, um grande perigo que já aconteceu dezenas de vezes no Brasil após tragédias naturais. O problema é que os gaúchos estão condenados a pensar, desde já, no longo prazo.

Uma forma de consolidar um diagnóstico que aponte para as imensas transformações que terão de ocorrer no modelo de desenvolvimento gaúcho é trazer especialistas internacionais e ouvir os estudiosos brasileiros. Eles devem mostrar as tragédias naturais ocorridas em outros países e as medidas que foram tomadas, geralmente amplas e profundas, para se evitar a recorrência ou ao menos para mitigar os efeitos. Tais pesquisadores e gestores têm de apresentar os dados de forma bastante clara, realçando todas as consequências de se tentar permanecer no antigo normal. Além disso, a comunicação deve ser persuasiva e difundida a todos os grupos sociais, num processo que certamente não terminará nos próximos meses. É como na questão da vacinação: regularmente, será necessário ter campanhas públicas no Rio Grande do Sul para lembrar que os caminhos de mudança serão percorridos por muito tempo - novamente, a relevância do longo prazo.

A capacidade de os diagnósticos convencerem a sociedade gaúcha depende também dos prognósticos apresentados. Isso vai exigir a discussão com os atores sociais de um planejamento de ações, com objetivos bem definidos e metas claras, apresentando as consequências de não se tomar determinadas decisões. A temporalidade das medidas, com um calendário de curto, médio e longo prazo, é outro elemento central aqui, tanto para que todos reorganizem sua vida quanto para compreenderem a profundidade das mudanças. É preciso, ademais, realçar que novos comportamentos terão de ser adotados, sem que isso signifique necessariamente uma redução do bem-estar social. Até porque não há nada pior do que os efeitos de desastres naturais.

É provável que, no balanço final dos diagnósticos e prognósticos, se constate que a necessidade de transformação no padrão de desenvolvimento riograndense já deveria ter sido notada antes. O Rio Grande do Sul envelheceu, tem perdido população, vivido uma crise fiscal há décadas, mas seu modelo econômico e social conservou-se sem grandes propostas de inovação. Agora se sabe que sem uma âncora ambiental, que perpasse todas as esferas da vida social, será impossível criar um novo paradigma. Está aí a grande tarefa dos gaúchos: chegar efetivamente ao século XXI que suas elites e eleitores teimavam em não encarar.

As finalidades definidas após o desastre climático não serão alcançadas sem se construir os meios adequados. Entra aqui um conceito-chave para o sucesso da reconstrução gaúcha: a governança colaborativa. Ela tem como objetivo articular continuamente, de forma institucionalizada e mirando o longo prazo, o processo de transformação pós-tragédia. Colaboração, é bom que se diga, não significa ausência de conflito. Trata-se, ao contrário, de um modelo que busca construir os consensos possíveis, gerenciar de forma eficiente as divergências e convencer a todos que o modus operandi colaborativo é o mais efetivo na garantia de uma solução social ótima, que não é perfeita, mas que gera menos prejuízos a cada qual e ganhos comuns mais consistentes e de longa duração.

Os pontos estratégicos da governança colaborativa são a criação de arenas de discussão e deliberação, a montagem de um processo decisório transparente e capaz de reduzir as rusgas inúteis e, como corolário, a construção de uma cultura de confiança e colaboração entre atores que têm muitas vezes interesses e visões de mundo diferentes. Com o tempo, é possível descobrir pela prática colaborativa que há muitos caminhos possíveis que são essenciais a todos, pois o desastre climático realçou o quanto os gaúchos, mesmo com suas assimetrias de vários tipos, convivem na mesma embarcação riograndense. E esse barco vai afundar se não encontrarem formas de cooperar, especialmente com vistas a transformações de longo prazo.

Dois são os elos mais importantes desta modelagem governativa. O primeiro relaciona-se com a Federação. É fundamental construir um modo de colaboração institucionalizado entre a União, o estado e os municípios riograndenses. No curto prazo, o governo federal tem sido muito prestativo, muito mais do que foram outros em tragédias recentes - como o caso do governo Bolsonaro, mestre em se eximir das responsabilidades coletivas. No entanto, dadas as divergências políticas numa sociedade fortemente polarizada, ao que se soma o contexto eleitoral de 2024, é imprescindível construir uma solução que vislumbre decisões e formas de implementação para além dos mandatos dos atuais governantes. Modelos de conselhos federativos e/ou autoridades independentes são possíveis respostas, uma vez que são capazes de fortalecer a cooperação e gerar um pacto por uma transformação que vai exigir anos de ação federativa coordenada e muita generosidade colaborativa.

A colaboração terá ainda que guiar a relação do setor público com a sociedade e os entes privados. Há setores políticos hoje que jogam em prol do descrédito da política e dos governos, apostando que o caos e o voluntarismo produzirão uma solução melhor a uma tragédia gigantesca. Isso é pura ignorância ou uma forma populista de enganar os eleitores - aliás, Bolsonaro foi desastroso no maior problema coletivo de seu mandato, que foram as 700 mil mortes por covid-19. A reconstrução da Europa do pós-Guerra ou da Holanda pós-desastres naturais exigiu um governo forte, competente e entrelaçado com os atores sociais, por meio de muito diálogo baseado em diagnósticos sólidos e implementação azeitada. Ressalte-se esse último ponto: sem um modelo que fortaleça os mecanismos de implementação, os planos e a legitimidade da reconstrução se perdem ao longo do caminho.

O Rio Grande do Sul sempre se caracterizou por uma forte reverência ao passado. As histórias das guerras, os hinos, roupas e festas veneravam a história para construir a identidade gaúcha. Nada contra as tradições, que são importantes para encontrarmos nosso lugar no mundo. Mas o desastre climático de maio de 2024 condena o povo riograndense a viver, daqui para diante, em prol do longo prazo, que se torna a sua maior (ou única?) tábua de salvação. Só um futuro planejado e constantemente debatido pode evitar o retorno das tragédias de grandes proporções e recriar o Rio Grande do Sul do século XXI, aprendendo com os erros para ter novas glórias, que unam colorados e gremistas.

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