quarta-feira, 22 de maio de 2024

Desastre gaúcho reafirma nossa ignorância

Desastres ensinam o óbvio infalível dos inesperados que reafirmam nossa ignorância, desmazelo e onipotência. Alertam sobre o que precisamos aprender e chamam a atenção para os limites de nossas certezas. Para o fato de não haver rotina, treinamento, regra, programa ou costume que não tenha a sua contraparte no acidente, no esquecimento, na mentira, na ausência e na surpresa do que está aquém ou além da plausibilidade do aqui e agora, garantidores da concretude do real.

São os imprevistos humanos ou naturais que nos obrigam a parar para pensar. O imprevisto força a desconfiar do previsto. Coage a tomar consciência do exagero ou da intrigante falha que promoveu o inesperado. Do inesperado que desmanchou a cena, o roteiro, o plano, esquema ou rotina, obrigando a realizar o grave e difícil exercício de “ouvir, parar e olhar”, como dizem os avisos americanos nas encruzilhadas ferroviárias.


Dos nossos, eu não posso falar, porque liquidamos estupidamente nossas ferrovias. Ademais, eles jamais seriam lidos por passantes analfabetos. Essa condição trágica e básica da secular opressão do nosso “povão”. Povo ou gente que, como clama nossa habitual hipocrisia populista, tudo merece! Não há como duvidar de que enriquecemos à sua custa e por meio dele! Temos, portanto, que manter esse amado “povão” como “massa”. Massa ignara sem a qual não exerceríamos nossa indiscutível ascendência bacharelesca, jurídico-legal, militar, acadêmica, ideológica, religiosa, artística e moral. Ascendência confirmadora desse papel de professores e salvadores do povo, usando os mesmos chavões e leis que dependem dos indiciados para ser cumpridos. Leis que confirmam que o crime compensa.

Sem esquecer, é claro, as clássicas receitas ideológicas mal entendidas (algumas, lembro, escritas em alemão...) que nós, bacharéis e burros-doutores, palpitamos com o intuito de destruir, enervar ou simplesmente chatear nossos adversários. Esses “outros” que a igualdade torna antagonistas para a infelicidade do nosso coração aristocrático, que imediatamente invoca as hierarquias não politizadas assegurando supremacia social. A nostalgia da gradação social mantém vivo o “você sabe com quem está falando?”. Essa advertência incompatível com a isonomia democrática, cuja função é impedir a impessoalidade exigida pela difícil igualdade democrática.

Igualdade que, como aprendi com Millôr Fernandes, meu mestre em ciências ocultas e letras apagadas, desmantela o “sabe com quem está falando?” e previne a presença da velha ordem social ordenada em múltiplas polaridades: senhores/escravos, pretos/brancos, superiores/inferiores, pobres/ricos, santos/pecadores, progressistas/fascistas. Nessa estrutura dualista, os inesperados sociais são tragédias ou escândalos salvacionistas.

O cataclismo gaúcho demanda uma reação inesperada porque não é “político”. Não tem nem um lado de “direita” nem de “esquerda”. Sendo natural e não tendo intenções, atinge a totalidade humana a seu redor de modo igualmente indiferenciado.

Então, como reagir, se nossa administração pública é relacional e politizada? Como agir com presteza e eficiência com um sistema administrativo amarrado em si mesmo? Um sistema pateticamente burocratizado, porque não pensa em eficácia, mas em autoproteção e em manter o poder. Em salvaguardas, porque nossa índole política é assaltar o que é de todos. A “coisa pública” de que os administradores eleitos pelas nossas esperanças se apoderam, porque o que é público não é de ninguém, logo é de quem abocanha o poder.

A catástrofe natural mostra os limites de um sistema político alérgico a sacrifícios e altruísmos, orientado que está pela mesquinhez e pelo sectarismo dos “governos” que, no fundo e, com o perdão pela ofensa, não merecem a democracia.

A enchente grita que é preciso governar para o Brasil, e não para partidos, grupos, segmentos, burocracias e corporações. Todos têm direito a influenciar o país e, no governo, a propor suas diretrizes, mas o Brasil tem de ser guiado por meio de projetos comuns. Fala-se muito em “Estado” e “governo”, mas os governos sempre vencem as eventuais disputas. A tragédia gaúcha apresenta claramente a necessidade de um Estado mais harmonioso: impessoal, eficiente e equilibrado.

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