domingo, 9 de julho de 2023

Quanto vale 1% da indignação das redes sociais?

A coincidência é trágica, diz alguma coisa sobre o ar dos tempos e, por isso, volto a assinalá-la: na semana passada, foi chocante verificar como o mundo se envolveu, de forma absolutamente desproporcional, com a morte de cinco pessoas armadas em exploradores dos destroços do Titanic, enquanto, em simultâneo, se procuravam 500 pessoas desaparecidas após o naufrágio do barco de pesca Adriana, nas águas do Mediterrâneo. No primeiro caso, soubemos tudo ad nauseam: da excentricidade das viagens turísticas vendidas pela OceanGate aos desafios dos mergulhos em profundidade. Pelo contrário, dos migrantes, dos quais mais de 100 são crianças, pouco ou nada quisemos saber, numa gritante falta de empatia para com a miséria daquelas vidas desafortunadas.

No fundo, foi como se, acerca destes últimos, seres humanos em busca de um futuro melhor, já nada houvesse a saber. Como se tudo o que lhes diz respeito fosse aborrecido e enfadonho (e, na verdade, não nos dissesse respeito…). Em jargão jornalístico, mais ou menos técnico: old news, storytelling a soar demasiado a déjà vu. Quando é que a morte de centenas de pessoas às portas da Europa, por excelência o continente do legado humanista, deixou de ser manchete e passou a nota de rodapé? As histórias daqueles migrantes, provenientes na sua maioria da Síria, do Egito e do Paquistão, inquietam-nos, mas são como ladainhas que, convenientemente, preferimos ignorar. Também nos chocam os paquetes estacionados ao largo do Reino Unido, repletos de pessoas tão indesejadas quanto invisíveis. Sensibilizam-nos ainda os que procuram um pouco de esperança, mas que logo são prontamente despachados para hotéis no Ruanda.

Nunca a demagogia ajudou a resolver problemas; não há respostas simples para problemas complexos. Que a Europa está a braços com uma grave crise migratória, à qual não tem conseguido dar uma resposta política digna, e que o Mediterrâneo – por paradoxo, o mar das civilizações da Antiguidade – está transformado num cemitério, isso, infelizmente, já nós sabemos. Mesmo que nos indigne o modo como alguns governos, nomeadamente o inglês, o grego ou o italiano, têm lidado com o problema, sabemos que as soluções não estão ali ao virar da esquina. Neste caldo de informação e de ruído de que estamos inundados, poderíamos, porém, redirecionar 1% da indignação inconsequente que fervilha pelas redes sociais para o Mediterrâneo.


Jornalistas não estão, naturalmente, isentos de responsabilidades. Por mais difícil que seja a batalha pela atenção, por mais frágil que seja a situação financeira das empresas de media, as escolhas editoriais importam, comportam valores e princípios – e riscos, claro. Privilegiar o ruído em detrimento de informação? Empolar os conflitos e ignorar os contextos? Destacar as emoções, em vez de destacar os factos e as explicações? Sobrevalorizar critérios de audiência em detrimento de critérios de valor-notícia? Tudo isto é admissível, racional sob determinado ponto de vista e, em muitos casos, até compreensível. Mas tem consequências – e é bom que não nos esqueçamos delas, não na hora de atribuir culpas, mas no momento de tirar conclusões.

Nunca, como hoje, houve tanta informação no mundo. Em quantidade e também em velocidade: são ambas avassaladoras, virtualmente impossível de reter pelo cérebro humano. (Um parêntesis apenas para notar que, não obstante, ainda existem regiões, sociedades fechadas e regimes imperscrutáveis, onde é muito difícil obter informação fidedigna – como a rebelião do Grupo Wagner, no fim de semana passado, veio comprovar.) O que isto não significa é que os cidadãos estejam a tomar melhores decisões, recorrendo ao mantra que os jornalistas – a começar por mim, evidentemente – gostam de repetir. A cientista Joana Gonçalves de Sá, do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, prepara, para breve, a publicação de um estudo multidisciplinar sobre os processos de decisão e o modo como as pessoas lidam com a desinformação, que trará um contributo importante para esta questão.

Ainda é preciso aguardar pelas conclusões finais, mas a investigadora tem avançado algumas ideias importantes. Defende Joana Gonçalves de Sá que não existe uma relação linear entre aquilo que julgamos saber e aquilo que, de facto, sabemos. E, como a curva da confiança cresce mais rapidamente do que a do conhecimento, as pessoas mais suscetíveis a partilhar fake news, por exemplo, não são as que menos sabem, ao contrário do que intuitivamente poderíamos pensar. Antes aquelas que já têm alguma informação e que tendem a não acreditar em nada, a desconfiar de tudo. Portanto, a conclusão que há a tirar é a de que a ignorância tende a ser o melhor antídoto para o estado do mundo? Perturbador, no mínimo.

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