Uma fascinante obra-prima renascentista pintada há mais de 500 anos pelo holandês Hieronymus Bosch mora no segundo andar da ala Richelieu do Museu do Louvre, em Paris. Batizado de “Nau dos insensatos”, o quadro a óleo sobre madeira é parte original de um tríptico que acabou separado ao longo dos séculos. Dizem os estudiosos que a “Nau” de Bosch foi inspirada na pena satírica de um humanista alemão do mesmo período, Sebastian Brant, que escrevera em verso uma paródia da Arca de Noé. Na alegoria de Brant, o mundo era a nau, e seus habitantes/viajantes não se importavam para onde eram levados. Agiam desprovidos de razão, inclusive o capitão — se é que havia um a bordo.
Na tela de Bosch há dez passageiros amontoados numa embarcação à deriva, além de dois outros já náufragos. Ninguém parece fazer coisa com coisa: uma freira toca alaúde, um beberrão vomita, outro rema com uma concha de cozinha, uma mulher golpeia um quase afogado com uma jarra. Pendurada na vela mestra, vê-se uma suculenta ave assada, e o mastro em forma de árvore abriga uma coruja, símbolo de maus augúrios na Idade Média. O desenho de uma lua crescente na bandeira da embarcação parece remeter à raiz latina da palavra lunático. Como um todo, a tela exprime o comentário social de Bosch sobre o viver de sua época. Ao retratar um grupo de loucos de esgar atormentado, perdidos no mar da vida, sem freios morais nem rumo, o quadro também poderia ilustrar os bolsões de brasileiros agarrados a pneus e mitos. Como não comparar a “Nau dos insensatos” aos últimos suspiros do governo Jair Bolsonaro?
A última live do presidente, poucas horas antes de sua fuga oficial rumo a Orlando em avião da Força Aérea Brasileira, foi patética. Mas bem ensaiada. Em 52 minutos, ele mentiu quanto quis e omitiu o que pôde. Voltou a questionar o sistema eleitoral e falou em “derrota parcial”. Acovardado pelo cerco judicial que se estreita contra ele e sua família, procurou desvencilhar-se de atos terroristas praticados em seu nome. Justificou o sumiço e a falta de apoio público à nau disposta a abraçar qualquer sinal de golpe militar; e qualificou os apoiadores radicalizados de “pacíficos” e “ordeiros”.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, talvez definisse o teor da derradeira live do presidente em fuga como “momento de cognição incompleta”. Os seguidores mais extremistas do “mito” o tacharam de frouxo, enquanto outros tantos simplesmente inventaram nova teoria conspiratória: na ausência do capitão, o cavernoso general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, assumiria o golpe. Numa outra nau de insanidade bolsonarista, o hasteamento a meio pau da bandeira nacional, decretado como parte do luto nacional pela morte de Pelé, chegou a ser festejado como sinal de que o ansiado golpe militar estava finalmente em marcha. Tristes trópicos.
Para quem, em 1974, assistiu à humilhante partida da Casa Branca do presidente americano, Richard Nixon, obrigado a renunciar para evitar o impeachment, a saída à francesa de Bolsonaro entrará para a História como mais degradante ainda, por comezinha. Nixon teve a hombridade de encarar presencialmente a imprensa que o derrubou e permitiu que a História registrasse seu amargo embarque rumo ao exílio do poder. Bolsonaro, sendo quem é, manda dizer a seus 58 milhões de eleitores que vai dar um tempo — gozará um período sabático no estado trumpista da Flórida. “Sabático” é termo de uso frequente no mundo acadêmico para designar uma pausa no trabalho. É comum aproveitar essa suspensão da rotina para ampliar o conhecimento, engatar novos projetos ou simplesmente pensar melhor. Difícil imaginar que algo de produtivo ao bem comum brote na mente de Jair, agora cidadão comum, durante esse “sabático”. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, em 1.460 dias de mandato presidencial, Bolsonaro trabalhou 73 apenas meio período, participou de 63 motociatas e deu-se o direito de 15 períodos de férias ou feriadões fora de Brasília. Sem falar no abandono das funções por dois meses a partir da derrota eleitoral mal digerida.
É provável que, pelos cânones da necropolítica aplicada por Bolsonaro no Brasil democrático, a perda de poder seja por ele sentida quase como uma condenação à morte. Isso porque o presidente em fuga jamais compreendeu que a política não é uma profissão — ela deveria ser, no mundo ideal, a dedicação temporária de alguém a sua comunidade. Em missas fúnebres celebradas por igrejas cristãs, réquiem é sempre a primeira palavra do ritual dedicado ao repouso da alma de quem partiu. Não houve e não deverá haver réquiem na despedida inglória desse capitão fracassado. Ele deverá, primeiro, acertar suas dívidas com a nação que desmantelou para que o Brasil readquira, a partir deste domingo 1º de janeiro de 2023, o direito de trazer para o presente o futuro a que tem direito.
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