O lema "Deus, Pátria e Família", citado por Jair Bolsonaro em inúmeros discursos desde a sua campanha de 2018, ganhou um quarto elemento na disputa eleitoral deste ano. Os atuais materiais de campanha do presidente usam: "Deus, Pátria, Família e Liberdade".
Na terça-feira, em Balneário Camboriú (SC), ele afirmou: "Temos a obrigação de lutar pela liberdade". Seus apoiadores também citam o termo com abundância. O empresário Roberto Justus divulgou um vídeo no qual se define como um "liberal na essência" e declara apoio a Bolsonaro por ele ser o candidato que "luta pela liberdade individual". Para completar, o atual partido do presidente se chama Partido Liberal (PL).
A defesa da liberdade no bolsonarismo também aparece ligada à flexibilização do acesso às armas e como reação a decisões judiciais que puniram apoiadores do presidente por ataques às instituições democráticas e a ministros do Supremo Tribunal Federal.
Seria o uso do conceito de liberdade pelo presidente compatível com seus constantes ataques à liberdade de imprensa, à separação entre os Poderes e à liberdade de escolhas individuais, inclusive sexuais e de gênero, que fundamentam o liberalismo?
A associação Livres, que promove os valores do liberalismo no Brasil e reúne em seus quadros os economistas Pérsio Arida e Elena Landau, entre outros, afirma que não.
Mano Ferreira, diretor de comunicação do grupo, diz que o liberalismo, uma ideologia política e econômica que teve seu ápice no século 19, é representado no mundo contemporâneo por três pilares: democracia liberal, economia de mercado e sociedade aberta e tolerante. O que se vê na campanha do presidente, segundo ele, é apenas um desses aspectos, o econômico – e, mesmo assim, de forma deturpada.
Ele diz que o melhor teste para avaliar o compromisso de uma pessoa com o liberalismo não é checar se ela defende a própria liberdade ou a de seu grupo, mas a liberdade do outro. Esse preceito é resumido numa frase do historiador abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), inspirador do Livres, de que é necessário cultivar o "amor da liberdade alheia". O atual presidente não passa nessa prova, afirma Ferreira.
"No discurso bolsonarista, há a evocação da liberdade para defender o grupo do próprio presidente, mas existe pouco compromisso com a liberdade do outro, de quem discorda. O Bolsonaro traz construções como a ideia de que a minoria deve se curvar à maioria ou desaparecer, um tipo de ideia profundamente antiliberal."
Ficam de fora do discurso do presidente, diz, a liberdade de imprensa, a liberdade sexual e de gênero e o respeito à separação de Poderes e ao sistema de freios e contrapesos da democracia liberal, entre outras.
Ele avalia que o primeiro mandato de Bolsonaro ficou muito distante de um governo liberal, com exceções pontuais como a aprovação da Lei da Liberdade Econômica, que reduziu a burocracia para a abertura de empresas, e do marco legal do saneamento, que ampliou a competição no setor.
No geral, diz, a gestão do presidente violou os valores do liberalismo ao "demonizar a divergência" e na sua agenda de políticas públicas, como no Ministério da Educação, na criação e ampliação de benefícios sociais às vésperas da eleição e nos repetidos ataques ao sistema eleitoral que ferem por consequência a liberdade política da população.
O Livres apoiou neste ano 59 candidatos a cargos eletivos, e elegeu um deputado federal, Alex Manete (Cidadania-SP) e dois deputados estaduais, Emerson Jarude (MDB-AC) e Cibele Moura (MDB-AL). Tem ainda um candidato a governador no segundo turno, Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), e uma candidata a vice-governadora, Priscila Krause (Cidadania-PE). A associação não se posiciona sobre a disputa ao segundo turno para presidente.
O liberalismo foi utilizado em muitos países nos séculos 18 e 19 como base teórica de movimentos que derrubaram regimes baseado na nobreza e criaram estados mais enxutos, que garantissem a liberdade privada e a segurança dos cidadãos.
No Brasil, esse processo ocorreu de forma peculiar, como um "liberalismo conservador", diz o sociólogo Fábio Gentile, professor da Universidade Federal do Ceará e autor de um artigo acadêmico que analisa a tensão entre liberalismo e autoritarismo ao longo da história do país.
O próprio processo de Independência, cita, foi dirigido por uma oligarquia, que outorgou a nova Constituição. "Não teve uma burguesia que fez uma revolução de baixo e chegou ao poder, criando o Estado e os direitos."
O liberalismo foi um mote da Independência, mas não estruturou um pacto político liberal, nem era associado à ética burguesa da livre iniciativa. Durante algumas décadas, o Brasil teve autodenominados liberais que defendiam a liberdade de ter trabalhadores escravos.
Nessa transição do Império para a República, Gentile afirma que muitos intelectuais e políticos brasileiros consideravam o liberalismo uma ideia "fora de lugar" no país, devido ao seu estágio de desenvolvimento econômico e social, e que o Brasil precisaria de uma "fase autoritária" para avançar.
A associação entre liberalismo e autoritarismo não foi exclusiva do Brasil. Gentile menciona que Milton Friedman, um dos expoentes do neoliberalismo – teoria que atualizou os princípios liberais na segunda metade do século 20 – considerava a realização da sociedade de mercado o objetivo principal, e deu seminários e instruiu autoridades da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, que durou de 1973 a 1990.
Diversos chilenos que haviam estudado na Universidade de Chicago nos anos 70 e 80 sob a orientação de Friedman trabalharam posteriormente no governo Pinochet, ficando conhecidos como Chicago Boys. O ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, estudou nessa universidade na mesma época.
Gentile afirma que a ascensão da direita no Brasil na segunda década do século 21 reproduz a "peculiar convivência de princípios liberais e práticas autoritárias" e inclui alianças entre um líder de perfil autoritário e movimentos neoliberais que não concordam com toda a cartilha bolsonarista, mas o "consideram útil" para seus interesses.
Um exemplo é o apoio a Bolsonaro do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do partido Novo, criado em 2015 para defender o liberalismo no Brasil.
Liberdade versus fantasma do comunismo
Há um outro aspecto que ajuda a compreender o que o presidente tem em mente ao se referir à defesa da liberdade, diz Gentile: a época e o tipo de sua formação acadêmica.
O presidente graduou-se pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, quando a liberdade era um conceito "abusado" no mundo e no Brasil para se contrapor ao modelo comunista durante a Guerra Fria.
A defesa da liberdade foi um dos motes do golpe militar de 1964, expresso no nome da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma sequência de manifestações de rua que antecederam a derrubada do governo do então presidente João Goulart.
Bolsonaro é um defensor da ditadura que governou o Brasil até 1985, e elogiou e homenageou líderes e torturadores do regime militar. "Ele incorporou a teoria do golpe de 1964 como um argumento de libertação do país do inimigo comunista, como um movimento libertador do Brasil. Então, para ele, a liberdade é totalmente compatível com uma ditadura que sufoca quem não está de acordo", diz Gentile.
O presidente e sua campanha à reeleição seguem recorrendo ao fantasma do comunismo para aglutinar apoiadores. Em setembro, antes do primeiro turno, ele disse num comício em Sorocaba que Lula era um "capeta que quer impor o comunismo no nosso Brasil". Nesta quarta-feira, a senadora eleita Damares Alves (Republicanos), afirmou em post no Twitter que o Brasil seria a "última barreira de proteção contra o avanço do comunismo na América".
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