Vive-se, por aqui, um cenário de barbárie, de digestão mal comportada e de degradação da estrutura administrativa do Estado e das políticas públicas, sobretudo aquelas que tratam da fiscalização e do controle do manuseio de recursos. A administração pública no Brasil está cem anos atrasada, e não surge ninguém, em eleição alguma, preocupado em projetar-lhe uma forma e um sentido. Ao contrário, o Estado é que parece ser um grande transgressor.
Ninguém que transitou pelo estrutura gestora do Estado, mesmo transgressivamente, é condenado. Perfil infrator até parece uma pré-condição para o credenciamento a um cargo público. O Tribunal de Contas da União, vez por outra, pune um motorista com a demissão. O da Justiça, um ou outro juiz, com a aposentadoria, mas com direitos e salários da ativa. A Receita Federal tem uma sala exclusiva para os grandes caloteiros. Ex-presidentes da República recebem do Estado para falar contra ele. Nem o que está escrito na Constituição é protegido. Não tem mutirão que consiga hoje organizar o que vem sendo historicamente desarrumado.
Em um longo e bem articulado voto, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia, com ares de grande corregedora, tocou em um ponto crucial do descompromisso dos ocupantes de cargos públicos com a máquina do Estado. Além de cobrar medidas urgentes do IBAMA e da Funai para conter o desmatamento na Amazônia e o avanço sobre as terras indígenas, apelidou de "cupinização" a silenciosa e invisível ação e omissão política que sistematicamente corrói a estrutura e a alma do Estado.
Ela se fundamentou nas tentativas de desqualificar e esvaziar os órgãos de fiscalização ambiental e dos direitos territoriais dos indígenas, ao interpretar uma Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental - ADPF 760, originada de um grupo de partidos políticos, cobrando o esvaziamento do IBAMA, da Funai, do Fundo da Amazônia, do Conama e outros. Mas, dentro da máquina do Estado, a questão não parece ser apenas pontual. A complexidade é bem maior. Quem a corrói são os próprios políticos, e não as empresas, que agem passivamente. As cobranças vem de dentro do próprio Estado.
As aparentes boas intenções dos partidos políticos vão muito além, e até dos candidatos à Presidência da República. Nenhum ministério, empresa, autarquia, órgão público de maneira geral, tem a primazia da proteção institucional. Nem patrimônio da União, que deveria manter o Ministério Público sempre de prontidão.
No seio do Estado, tudo o que é sólido desmancha-se no ar. A consequência vem da estratégia do confundir para dividir e do iludir para dirigir. Foi o caso das conclusões e recomendações contra os Anões do Orçamento, do Mensalão e da Lava Jato. O Estado nunca tem razão. Assaltado, sistematicamente, paga indenizações aos assaltantes, funcionando quase como um prêmio, para a ampliação das operações transgressoras.
Chegam as eleições, os "cupins" estão excitados. Entender o papel do Estado e a sua estrutura não é algo para iniciantes, mas os despreparados, ávidos, se antecipam. No primeiro ano de gestão, os governantes eleitos não produzem nada de significativo. Governam apenas dois anos em cada mandato de quatro anos, porque o primeiro ano é dedicado a apreender o sentido do Estado e aparelhar a sua estrutura, segundo as conveniências particulares e partidárias. O último ano é voltado para uma reeleição ou a eleger um companheiro conivente.
A cupinização do Poder do Estado pelas elites - a concentração do dinheiro e do Poder nas mãos de poucos - concorre para a destruição, por dentro da estrutura e dos objetivos da máquina pública, pela apropriação direta ou indireta das políticas públicas e dos órgãos que as administram. É um amigo aqui, um cabo eleitoral ali. Um com a função de propor uma nova política pública, outro de redirecioná-las para os interesses pessoais ou de grupos, outros com a missão de desmantelá-las mesmo. Ninguém entra para explicar ou com a solucionática. A governabilidade é o espaço privilegiado para confundir ainda mais a administração pública.
Cada projeto de lei aprovado no Congresso, a título de esclarecer, confunde ainda mais. Assim são também as diferentes reformas administrativas porque tem passado o Estado brasileiro. Nenhuma delas consolidou uma política pública ou deu configuração definitiva para a estrutura de Estado. À fórceps, é verdade, mas justiça seja feita, só os militares conseguiram. Nos governos civis, o País chegou a variar de 18 a 36 ministérios.
Assim, fora dos anos de chumbo, ocorreu e ocorre com os ministérios do Planejamento, do Trabalho, da Indústria e Comércio, do Meio Ambiente, da Irrigação, da própria Administração; em órgãos como o DNOCS, Sudene, Sudam, Sudeco, Sudesul, Sudepe, Emater, Sunab, Funai, Ibama, Secretarias da Amazônia, órgãos estratégicos do Estado, que são destruídos e reconstruídos sistematicamente. A apropriação desses espaços tornou-se muito sofisticada com a "cupinização".
Tivemos presidentes que criaram ministérios para explicitamente gerar empregos e poder de barganha político-partidária. Os espaços do Estado tornaram-se balcões de negócios, a pinguela que une o público e o privado debaixo de um mesmo guarda sol: o Estado é paternal. Não, o Estado é sistematicamente assaltado, à luz do dia. Há 100 anos, o presidente argentino Domingos Faustino Sarmiento fez uma reforma geral das estruturas de poder no seu país. Elas ganharam configurações institucionais históricas e respeito da população. Saíram do estado de barbárie em que, por aqui, estivemos sempre mergulhados.
No Brasil, em tempos de rudeza no entendimento do que seja a coisa pública e o papel do Estado - e não está longe - os órgãos de fiscalização eram incendiados para queimar processos comprometedores. Isso aconteceu no Ministério da Fazenda, com a Receita Federal; com o Ministério da Agricultura, na fiscalização sanitária e com os comprometimentos com os incentivos fiscais do reflorestamento; com o fundo de financiamento à educação; até no Tribunal de Contas da União.
A rudeza das soluções envolvendo os direitos do Estado e os privados não melhorou nesses cem anos de história da República, apenas sofisticaram-se os métodos de apossamento da máquina e dos recursos públicos. As estruturas expandem-se, às vezes; em outras, encolhem-se. Não se põe mais fogo em prédios, contamina-se o sistema de fiscalização com um vírus, ou cria-se um aparato legal que gere exceções e contradições insolúveis desviando o sentido original das leis e das instituições.
As áreas da educação, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente são vítimas atualmente da inanição, um outro tipo de estratégia que se dá pela redução drástica dos recursos de custeio (manutenção). É uma espécie de "garrote vil", que aperta até que fique demonstrada a inutilidade daquela instituição ou daquela política pública. No Brasil a necessidade de uma reforma do Estado é premente, mas virou um "bordão" para os políticos. Se depender dos "cupins", nunca irá acontecer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário