Da primeira fazem parte todos os abusos cometidos em nome do proletariado, do socialismo, da revolução ou do progresso; os episódios foram muito numerosos, em toda a parte - desde os processos de Moscovo e das fomes na Ucrânia aos excessos norte-coreanos, sem esquecer o genocídio cambojano. Da segunda "família " fazem parte os abusos cometidos em nome da luta contra o bolchevismo. Também aqui, forma muitos os episódios, sendo obviamente o mais devastador a catástrofe planetária causada pela "peste castanha" do fascismo e do nazismo.
A percepção dos diversos crimes passou por muitas flutuações. No pós-guerra imediato, a maior parte dos historiadores considerava excessivo, inconveniente e até suspeito colocar num mesmo plano os crimes do regime hitleriano e os de regime soviético. E, embora a imagem de Estaline tivesse acabado por ficar manchada, a do seu predecessor , Lenine, manteve-se imaculada durante muito tempo.
O estatuto de Mao Tsé-Tung conheceu, altos e baixos. Os seus erros espectaculares, como " a grande revolução cultural do proletariado", foram nessa época elogiados por intelectuais de renome. Actualmente , são julgados com muita severidade, mas "o grande timoneiro" não caiu tanto em desgraça como "o pai dos povos". Não existiu uma " demaoização" notória e, embora os seus sucessores se tenham desviado cuidadosamente da sua linha, mantiveram o seu mausoléu na Praça Tianamen, principalmente porque o consideravam um símbolo de continuidade política e de estabilidade.
Só quando a Guerra Fria chegou ao fim, devido ao fracasso e à desintegração da União Soviética , é que se tornou aceitável ridicularizar o "pequeno livro vermelho", comparar Estaline a Hitler e pôr em causa a imagem de Lenine. Deixou-se de ver nele o fundador respeitável de um poder socialista que os seus herdeiros haviam pervertido; passou-se a atribuir-lhe uma responsabilidade importante por tudo o que aconteceu de pois da Revolução de Outubro, que alguns historiadores rebaixaram ao nível de um vulgar golpe de Estado, sem dúvida audacioso, mas que em nada se assemelhava a uma sublevação popular.
Quanto a isto, não há motivo para comoção, pois tratou-se apenas de um golpe do destino. O comunismo, mais do que qualquer outra doutrina, teve a sua oportunidade e desperdiçou-a. Poderia ter feito triunfar os seus ideais e desconsiderou-os. Durante muito tempo, foi julgado com demasiada indulgência e, agora, é julgado com severidade.
Podemos, assim, concluir que, após este reajuste de perspectiva, a nossa visão dos crimes do século XX se tornou adequada e equilibrada? Infelizmente, não é bem assim. No que toca aos abusos cometidos pelos regimes comunistas, estamos em vias de varrer as últimas e as derradeiras ilusões. O mesmo acontece em relação aos abusos cometidos pelo nazismo e pelo fascismo e por aqueles que giravam na sua órbita, nas décadas de 0e 40. Os historiadores irão continuar a vasculhar, a reflectir, a relatar e a interpretar, como a sua área os convida a fazer, mas é sensato considerar que a imagem geral que temos da primeira metade do século XX corresponde , no essencial, à realidade.
Em contrapartida, a nossa visão mantém-se incompleta e, por vezes, claramente deformada, no que diz respeito aos crimes cometidos durante a Guerra Fria, entre meados dos anos 40 e início dos anos 90 do século XX. Não houve , no final da Segunda Guerra Mundial, uma condescendência real em relação aos abusos perpetrados pelos vencedores - os de Estaline, obviamente, mas também as chacinas massivas cometidas pelos ocidentais em Dresden ou em Hiroshima? No final da Guerra Fria, deu-se um fenómeno similar. Embora ninguém ponha já em causa as atrocidades cometidas pelos regimes que se afirmavam marxistas-leninistas - na Hungria, na Etiópia, no Camboja ou em Cuba -, os actos cometidos em nome da luta contra o comunismo são ainda frequentemente considerados, se não "intervenções cirúrgicas" necessárias, pelo menos "efeitos colaterais", sem dúvida lamentáveis e realizadas em nome de uma causa justa.
O que acabo de dizer merece que eu seja mais específico. A condescendência com esses abusos não é sistemática. A repressão selvagem exercida sobres os marxistas por certas ditaduras de direita, como a de Pinochet, no Chile, ou pelas ditaduras militares argentina e brasileira, são vastamente denunciadas. E a "caça às bruxas" levada a cabo na década de 50 do século XX pelo senador Joseph McCarthy é um tema recorrente tanto no cinema americano como na literatura. Contudo, sempre que se fala nos crimes cometidos, em nome do anticomunismo, contra as elites do mundo muçulmano, as consciências entorpecem.
Amin Maalouf, "O Naufrágio das Civilizações"
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