terça-feira, 19 de outubro de 2021

Nobel de Literatura Abdulrazak Gurnah não é visto como negro pelos compatriotas

A atribuição do Prêmio Nobel de Literatura a Abdulrazak Gurnah teve enorme repercussão em todo o continente africano. Mais do que a qualidade literária da obra do escritor de Zanzibar, que poucas pessoas ainda leram, discute-se a sua origem, o seu pertencimento ao continente e às suas tradições literárias, bem como os critérios étnicos e geográficos da Academia Sueca. O debate, embora mais sociológico do que literário, divide escritores, críticos e jornalistas culturais.

Podemos começar pela superfície — a pele. Não somos nós a definir a nossa raça: são os outros, aqueles que nos rodeiam. Gurnah, por exemplo, foi apontado por grande parte da imprensa norte-americana, europeia e até brasileira como um escritor negro (o segundo escritor africano negro a ganhar o Nobel da Literatura). Na África, contudo, ninguém o vê assim. Abdulrazak Gurnah nasceu no seio de uma família com raízes no Iêmen, tendo sido forçado a abandonar a sua ilha natal logo após a independência, na sequência de uma série de ataques à minoria de origem árabe por parte da maioria negra. Tornou-se refugiado, condição que se reflete em todos os livros que escreveu, precisamente por não ser visto como negro pelos seus compatriotas.

 O poeta e crítico literário Nelson Saúte, muito conhecido em Moçambique pela valentia com que afronta as opiniões dominantes, chega ao ponto de colocar em causa a africanidade de Gurnah: “Gurnah nasceu em 1948 no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico”. Para reforçar a sua tese, Saúte lembra o caso de Freddie Mercury, que tendo nascido também em Zanzibar, dois anos antes de Gurnah, numa família de origem asiática, raramente é referenciado como um músico africano.


Saúte falha num ponto: a obra de Gurnah é africana. Seus personagens são africanos, vivendo no continente ou no exílio. Se Freddie Mercury tivesse construído a sua obra a partir da herança musical de Zanzibar, e não do Reino Unido, seria hoje considerado, com absoluta certeza, um músico africano.

O sociólogo Elísio Macamo, também de Moçambique, coloca uma questão mais interessante: segundo ele, a Academia Sueca não costuma premiar a diferença, como pretende, e sim a proximidade. Regra geral, são premiados os autores que trocaram o idioma materno pelo inglês e se esforçam por traduzir a sua realidade para os leitores europeus. Para Macamo, “estes prêmios não passam de gestos simbólicos que os europeus usam para não se interpelarem de forma profunda, como o deviam ter feito aquando da descolonização”.

Tanto Macamo quanto o escritor angolano João Melo se mostram ainda irritados com a justificação dada pela Academia Sueca para premiar Gurnah: “pela sua penetração intransigente e cheia de compaixão dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes”. Isto, dizem ambos, é tentar transformar o escritor num etnógrafo da sua cultura. “Reivindico o meu direito de escrever sobre o que quiser e como o quiser”, conclui João de Melo.

Ninguém duvida das boas intenções da Academia Sueca. Porém, como a minha avó não se cansava de lembrar, “de boas intenções o inferno está cheio”.

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