domingo, 14 de março de 2021

A que horas vai ficar tudo bem?

Se, num funeral, nos aproximarmos da família enlutada para dizer que o seu ente querido vai ressuscitar, em princípio, somos acusados de mau gosto. Não adianta muito alegarmos que aquelas pessoas precisam de esperança porque falsa esperança, como o próprio nome indica, não é esperança, tal como um falso Picasso não é um Picasso. Quem tenta vender um falso Picasso como se fosse verdadeiro vai preso, mas a quem vende falsas esperanças não acontece nada. É uma burla que passa por simpatia, até porque o burlado tem muita vontade de acreditar nela. A divisa “vai ficar tudo bem”, que correu o mundo inteiro, gerou um entusiasmo infantil, quando devia ter gerado curiosidade infantil. Mais concretamente, aquela curiosidade que as crianças exibem quando, para as sossegar, lhes prometemos qualquer coisa. É sempre um erro. Um adulto que arrisque uma frase como “Amanhã podes comer um gelado” sabe que será sempre submetido a uma comissão parlamentar de inquérito infantil: “amanhã, a que horas?”, “à meia-noite já é amanhã?”, “de que sabor será o gelado?”, “é de copo ou de pauzinho?”, “vou comê-lo em casa ou no restaurante?”.

Infelizmente, não aplicámos esta grelha de escrutínio sempre que vários meios de comunicação social ou artistas bonzinhos nos prometeram piedosamente que ia ficar tudo bem. Como, felizmente, mantenho uma fulgurante imaturidade, desconfiei desde o início que a ideia segundo a qual vai ficar tudo bem era articulada por gente que não estava muito bem. No nosso caso específico, talvez seja bom manter presente o facto de sermos um país em que a regra é: mesmo quando nos corre tudo bem, muito dificilmente fica tudo bem. Uma vez que passámos por uma pandemia destruidora da saúde física e mental, da economia e do emprego, é bastante difícil sustentar que vá ficar tudo bem. Portanto, à éche tégue #vaificartudobem, julgo que devemos responder, tal como as crianças que ocupam o banco de trás do carro numa viagem longa, com as éche tégues #aquehoras? #jáestátudobem? #eagora? Se eles querem tratar-me como uma criança, contem comigo para me comportar em conformidade.

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