sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O povo contra a democracia

(...) A democracia prossegue em seu encolhimento global. Segundo novo relatório da Freedom House, adentramos o 13° aniversário de uma “recessão democrática”: em cada um dos últimos treze anos, mais países se afastaram da democracia do que foram em sua direção. As quatro democracias mais populosas do mundo são hoje governadas por populistas autoritários… o que, é claro, nos leva ao Brasil. Durante a campanha, Jair Bolsonaro demonstrou claramente suas semelhanças com Trump e Orbán. Como eles, Bolsonaro se pintou como o único representante verdadeiro do povo e chamou seus adversários de traidores ilegítimos; e, também como eles, atacou as regras e normas mais básicas das instituições do país — chegando a ponto de elogiar a ditadura militar que dominou o país por duas cruéis décadas.

O que define o populismo é essa reivindicação de representação exclusiva do povo — e é essa relutância em tolerar a oposição ou respeitar a necessidade de instituições independentes que com tamanha frequência põe os populistas em rota de colisão direta com a democracia liberal. Desse modo, a eleição de Jair Bolsonaro deve ser encarada como o evento mais significativo na história brasileira desde a queda da ditadura militar: pelos próximos anos, o povo terá de lutar pela própria sobrevivência da democracia liberal.

Os brasileiros conseguirão salvar a democracia brasileira? E terá o leitor deste livro algo a contribuir para essa que é a mais nobre das causas?

A resposta a ambas as questões é sim.


Há alguns meses, meu colega Jordan Kyle e eu começamos a montar o primeiro estudo sistemático do impacto que populistas do mundo todo tiveram sobre as instituições democráticas de seus países. Nossos resultados são desanimadores. A probabilidade de um populista causar um estrago duradouro ao grau em que um país pode ser considerado democrático é quatro vezes maior do que a de outros tipos de governantes eleitos. Apenas uma pequena minoria de presidentes e primeiros-ministros populistas deixa o governo por perder eleições livres e justas ou chegar ao fim do mandato. Quase metade conseguiu mudar a Constituição para se conceder poderes expandidos. Muitos restringem significativamente as liberdades políticas e civis desfrutadas por aqueles sob seu governo. E embora na campanha não raro prometam erradicar a corrupção, os países que governam ficaram, em média, mais corruptos.

Mas, apesar das más notícias, a principal lição a tirar desse estudo está longe de ser fatalista. Afinal, ele demonstrou que em muitos casos uma oposição disciplinada e atuante conseguiu fazer frente às tentativas do governo de expandir seus poderes. Assim como há populistas autoritários que concentraram poder nas próprias mãos e minaram as liberdades de seus súditos, também há casos em que os cidadãos removeram aspirantes a autocrata do governo com uma vitória acachapante nas urnas ou por meio de impeachment, devido à corrupção generalizada.

As evidências sugerem fortemente que a democracia brasileira corre grave perigo. Mas levam a crer também que o destino do país depende hoje das ações de defensores da democracia. Mas o que eles — você — podem fazer? A experiência de outros países sugere três lições principais.

Primeiro, a oposição sempre subestima o populista, deixando de enxergar a astúcia que espreita sob suas bravatas. Dos venezuelanos de classe alta que se convenceram de que Chávez não teria capacidade para continuar no poder aos italianos cultos que tinham certeza de que seus compatriotas em pouco tempo perceberiam que Silvio Berlusconi não passava de um charlatão ridículo, todos continuaram a escarnecer enquanto a vaca ia para o brejo. Com frequência, esse desdém pela figura de proa do populismo vinha acompanhado de uma palpável depreciação de seus partidários.

É fundamental que os brasileiros não cometam o mesmo erro: Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século, e seus partidários são cidadãos que, como você, terão que compartilhar o país por uma década ou até um século. Não o subestime e não menospreze essas pessoas.

Segundo, os opositores dos populistas muitas vezes deixam de trabalhar unidos até se verem juntos na impotência. Na maioria dos países, os populistas só alcançam o cargo máximo porque seus adversários fracassam em concluir um pacto eleitoral. E embora seja natural presumir que a ameaça autoritária possa nos ajudar a enxergar as coisas com mais lucidez, o oposto geralmente se mostra verdadeiro: aflitos e apavorados, os adversários do populista começam a fazer o jogo político da pureza, impondo testes ainda mais decisivos a seus potenciais parceiros e recusando-se a abraçar antigos aliados do populista dispostos a lhe dar as costas.

Todos os brasileiros que reconhecem o perigo representado por Bolsonaro e estão comprometidos tanto com a liberdade individual como com a autodeterminação coletiva precisam trabalhar juntos, a despeito de suas enormes diferenças políticas. Você poderá voltar à luta por taxas de impostos mais justas ou debater os limites do Estado de bem-estar social depois que esse perigo iminente tiver sido afastado. Por ora, é preciso união — ou sujeitar-se à cisão.

Terceiro, os oponentes dos populistas muitas vezes deixam de visualizar uma perspectiva positiva para um país melhor. Em vez de tentar convencer seus colegas cidadãos de que eles podem oferecer benefícios tangíveis, concentram-se apenas nas falhas gritantes de seus inimigos. Se ao menos conseguissem chamar a atenção para suas mentiras, preconceitos e mau gosto, o país finalmente levaria um susto e acordaria do pesadelo, atônito — é o que parecem pensar.

Mas a maioria dos partidários dos populistas tem plena consciência de que seu líder mente, dissemina mensagens de ódio e não passa de um bronco. Convencidos de que os políticos tradicionais nada têm a lhes oferecer, é precisamente isso que os atrai nele. Sempre existe a chance, dizem a si mesmos, de que o populista realize uma fração de suas promessas irreais. E, pelo menos, ele vai poupá-los da hipocrisia envaidecida da velha-guarda.

É crucial que os políticos da oposição evitem a armadilha de deixar Bolsonaro determinar a agenda política, concentrando-se exclusivamente em suas falhas pessoais e políticas. Em vez de denunciar as palavras afrontosas que estão sempre saindo dos lábios dos populistas, eles deveriam tentar uma estratégia própria. Pois somente quando os cidadãos se sentem mais esperançosos do que fatalistas — apenas quando recuperam a confiança de que políticos mais moderados lutarão e trabalharão por eles — eles mudam seu voto. Para resgatar o país, os defensores da democracia liberal precisam provar para seus concidadãos não só que Bolsonaro é ruim para a nação, como também que eles podem fazer um trabalho melhor.

A batalha pela sobrevivência da democracia brasileira ainda não foi perdida. Ao contrário dos cidadãos da Turquia e da Hungria, você ainda tem nas mãos a capacidade de brigar por seus valores. Um excelente começo é protestar sempre que o presidente tentar expandir seu poder. Afinal, nada melhor do que centenas de milhares de pessoas de todas as classes e etnias tomando as ruas em uma jubilosa celebração da democracia para demonstrar que Bolsonaro não fala em nome de todo o povo.

Se você se importa com a proteção de sua liberdade, é seu dever solene exercer seus direitos antes que o novo presidente os tire de vez. Mas vá com calma: salvar uma democracia de um populista perigoso é como correr uma ultramaratona — e você acaba de transpor o primeiro quilômetro.

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