quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Sobre o horror

Não sei o que é mais assustador: as linhas em branco ou a escuridão absoluta. Talvez seja uma questão do momento. Abro o computador e leio sobre a confusão em frente ao hospital em que uma menina de 10 anos está internada. Ela está lá para fazer um aborto legalmente amparado, ressalto, embora não devesse ter a necessidade em tempos novos. Ela foi estuprada pelo tio por quatro anos, ou seja, desde os 6 anos de idade. A confusão se deu pois grupos foram protestar contra o procedimento. Chamaram a menina e os médicos de assassinos e houve tentativa de invasão ao local. Uma menina de 10 anos grávida após anos de abuso sexual. Quem lê estas linhas provavelmente já está ciente do caso. Repito, porque a atrocidade, a vileza que empesteia a mente e os atos dos que se julgam guardiões da moral me choca a quase um nível de incredulidade. Não deveria me espantar em tempos reacionários, mas ainda é difícil. É duro acordar para este mundo.



Encaro a esperança como uma página vazia. Algo que devemos preencher e ser preenchidos de volta. É inútil desejar uma melhoria sem pôr a cara a tapa. Sem ter a força para permanecer em pé enquanto apanhamos das dificuldades. É preciso ter muita presença de espírito, casca grossa e um par de sapatos de corrida confortáveis. A realidade em meio a ódio e incerteza testa, e clama por nosso pior lado. Que quer desistir, que quer bater sem saber o motivo, que deita em posição fetal. Qual é o manual de condicionamento mental para proteger da loucura alheia, que sussurra para a sua loucura de estimação? Se só acaba quando termina, como saberemos que este é o fim, meu belo amigo? Santo Rocky Balboa, rogai por nós.

Revi “Apocalypse Now”. A versão “redux”, de 3h22, que considero mais imersiva em seu tema. Mais do que um filme de guerra, é uma alegoria para o enlouquecimento em seu estado mais selvagem. A fala do destruído coronel Kurtz ecoa: “O horror… O horror…”. A cena real é paralela à encenação fílmica. Um ambiente de caos, em que líderes absolutos brotam de dentro da selva e sacrificam os seus por causas pessoais. O horror e o terror moral são amigos, em que o coração é usado para amar e matar. É impossível descrever de forma adequada o horror. Talvez daí minha reação estática, de congelamento, quando me deparo com aqueles que preferem estupro e a morte de uma criança em nome de um propósito escuso. O exército de Kurtz se transfigurou nesses que acamparam em frente a um hospital em busca de sangue. A tela escurece.

A crônica inicia o último round. Escrever é dar uma mão em uma terra desesperada. A quem, não sei. A zona de guerra que habitamos são linhas em branco que formam a narrativa humana. O autor preenche a página com letras e espaços. Como o ser humano o faz? A comoção instantânea ou parcial não tapa sequer os buracos entre os dentes. Hoje a tragédia da menina comove, com razão. Entretanto, há o mesmo sentimento quando uma mulher mais velha é abusada e desacreditada? O ato é o mesmo. As reações, no entanto, divergem. Enquanto não se há empatia, se pôr no papel de quem sofre, apenas explodimos bombas retóricas a esmo e acertamos inocentes. Como a crônica, terá uma função de ser preencher um espaço e sumir. Seu único amigo é o fim, assim como este o é para a tristeza e a raiva. O que assusta é preenchimento pela escuridão absoluta. O momento de ocupar de outra forma os espaços não deve se restringir ao agora. Deve ser sempre.

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