sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Liberdade para odiar

Minha geração lutou muito pela liberdade para amar. Amar pessoas do mesmo sexo ou de cor de pele diferente. Mulheres lutaram para fazer amor antes do casamento. E para amar vários outros sem correr o risco de ser mortas. Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo”, dizia que a questão da mulher não era a felicidade, mas a liberdade. Precisávamos da lei ao nosso lado para exercer o livre-amar e o livre-pensar.

O sentimento na berlinda hoje no Brasil é o oposto. O ódio. Temos o gabinete do ódio ligado ao presidente Bolsonaro. Temos redes de ódio com milhões de seguidores, que destroem reputações, promovem linchamentos virtuais e chegam a levar adolescentes ao suicídio. Odiamos ideias e pessoas com a mesma paixão com que amamos. A Justiça pode coibir ou inibir uma manifestação de ódio? O que o Estado pode fazer para regular o livre-odiar sem que isso se transforme em censura? 

Conversei sobre os limites da liberdade com o constitucionalista Gustavo Binenbojm. Ex-aluno do ministro Barroso, do STF, Binenbojm foi advogado, no Supremo, de uma ação vitoriosa contra a proibição de biografias independentes e pela livre expressão. O voto mais expressivo foi o da ministra Cármen Lúcia: “Cala a boca já morreu!”. Agora, Binenbojm publica, pela Intrínseca, inaugurando o selo de não-ficção História Real, do editor Roberto Feith, o livro "Liberdade igual". 

O livro parte de um aparente paradoxo nesse Brasil tão polarizado: “Somos igualmente livres para sermos diferentes”. Isso significa que preciso aturar os sites bolsonaristas e aquele repugnante assessor do B., Tércio Arnaud Tomaz, o “rapaz das redes” do presidente, banido do Facebook e no Instagram por seu conteúdo tóxico? Afinal, querer ser livre é também querer livres os outros.

Sentimentos de aversão e de ódio são humanos, e não podem ser inibidos pelo Estado. Mas, externar isso de forma discriminatória ou violenta afeta a liberdade de terceiros. É aí que o Estado entra para regular. “A analogia que costumo fazer”, diz Binenbojm, “é com a liberdade de ir e vir. Todo mundo tem liberdade de locomoção, de ir, vir e permanecer, mas ninguém é livre para avançar um sinal vermelho e sair por aí a 160 km por hora, embriagado, arriscando a vida de outras pessoas. Isso também se reflete na liberdade de expressão”.

O que fazer com as fake news, que envenenam as democracias? O projeto começou muito ruim no Senado. Como uma espécie de censura digital, de controle do debate público. Mas o texto encaminhado à Câmara é bem mais amadurecido. Tenta evitar, com meios tecnológicos, campanhas de desinformação e linchamentos em massa. Restringe contas inautênticas, robôs, perfis falsos, que visam a ganhar dinheiro, manipular a opinião pública e até vencer eleições. “A internet não pode ser um território de ninguém, uma selva hobbesiana de luta de todos contra todos. (O filósofo Thomas) Hobbes dizia que, quando o estado de natureza impera, a vida passa a ser uma experiência brutal e breve”. 

Faroeste. Esse é o adjetivo que o autor de "Liberdade Igual" usa para se referir às redes. E o faroeste chega a nossa esquina. No gatilho, o dossiê para identificar servidores antifascistas. “Investigar ideias de cidadãos criando dossiês é uma prática de estados totalitários para discriminar, prejudicar ou perseguir servidores públicos com ideias diferentes do governo. Vindo do Estado, isso torna o Brasil um Estado policial totalitário”.

Vale para fascistas e comunistas? Nosso genial Millôr Fernandes dizia assim, cita Binenbojm: “Democracia é aquele regime em que eu mando em você. Ditadura é aquele regime em que você manda em mim”. 

“Defendo totalmente o Aroeira por sua charge satírica, copiando o símbolo nazista para criticar o comportamento de Bolsonaro diante da pandemia. Um exercício de crítica política. Mas também acho legítimo que o governo critique a esquerda por posturas autoritárias ou totalitárias de governos comunistas. Isso é um dos princípios cardeais de meu livro”. Discuta, ame, odeie, mas lembre sempre que os limites do bom senso e da lei garantem nossa democracia e um convívio civilizado, racional e inteligente. 

Num livre debate, deveria ser possível defender ideias da extrema direita à extrema esquerda, mesmo que pareçam abjetas, ignóbeis, lamentáveis. Mas há limites, como os conteúdos proscritos pela Constituição, não cobertos pela liberdade de expressão. Racismo, homofobia, nazismo, discriminação a qualquer religião, uso de pornografia não autorizada, apologia à pedofilia e ao terrorismo são alguns desses crimes. 

Deveria também ser crime um presidente elogiar torturadores e incitar o povo a se armar e investir contra as instituições democráticas. Ou incitar o povo a contrair coronavírus, aglomerando sem proteção e sem o uso de máscaras. Ou incitar doentes a tomar remédios como a cloroquina, não recomendada pela OMS, nem pela Fiocruz, nem pelos dois ex-ministros da Saúde. Você não acha?

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