Nada disso jamais houve — jamais haverá — sob um governo de Jair Bolsonaro, a fábrica de crises ele próprio. A usina de conflitos eleita para governar um país em depressão política profunda, onde grassa a insegurança jurídica — e onde só um gringo louco e desinformado, com muito dinheiro para queimar, investiria. Esse tipo exótico que simplesmente... inexiste. Mas que, garante-se, logo estará despejando bilhões aqui.
Houve, no entanto, quem se enganasse. (Ou se deixasse enganar.) Houve também quem enganasse.Para esses foi preciso que a peste sobre nós se abatesse; a chaga inclemente que precipita a imposição da verdade, que estabelece nova convenção social sobre o papel do Estado e que oferece a Bolsonaro, que é Dilma em matéria econômica, a chance de ser Bolsonaro antes de o imaginado — o que se livra do natimorto como se o ofertasse, tal qual vivo fosse, ao sacrifício da morte em praça pública.
Morre em praça pública o juízo daquele que, ante o baixar da praga, supôs que o presidente pudesse se aprumar para liderar algo que não a aplicação radical de seus propósitos. A pandemia é janela de oportunidades. E o homem é Brasil Grande. Ustra nos costumes; Tarcísio na economia.
Recomponho a imagem a que tenho recorrido: Bolsonaro como um girassol publicitário cujo norte se orienta pelo calor — pelo pulso — das redes. Retomo, assim, a reflexão iniciada na coluna da semana passada. Sobre o presidente estar trocando de pele, deixando pelo caminho — ainda antes da metade do mandato — a carcaça narrativa, de matriz eleitoral e existência precária, que o trouxe até aqui; o lavajatismo encarnado em Sergio Moro, por exemplo, já foi. Mais irá.
Um movimento, consciente, que resulta em perda de apoio e que não seria jogado sem a perspectiva bolsonarista de controlar o prejuízo e reequilibrar o tabuleiro por meio de conquista territorial em outro chão. É o que parece estar em curso. Um movimento que, tomando risco, identifica e mede ensejo, e que só ocorre porque fiado na troca de base social. Vai-se parte do esteio na classe média; talvez algo do alicerce na elite. Vem — para balancear — o arrimo nas classes populares.
As últimas pesquisas todas — que, de resto, apontam que a demanda da sociedade se moveu para a quase unanimidade de que o Estado deva sustentar artificialmente a economia — indicam que a aposta do presidente pode estar correta. Mesmo perdendo suporte a partir das crises que desaguariam nas quedas de Mandetta e Moro, mantém-se com popularidade estável e em patamar competitivo. Troca de pele — e o faz enquanto muda também de solo onde funda futuro. É essa a projeção que torna o guedismo descartável.
Quando a peste se lastreou entre nós, Bolsonaro fez seu jogo — um jogo de ganha-ganha. Covarde, lance de sociopata, mas eficaz. Aquele, esculpido na forja populista, que opunha saúde pública e saúde econômica — estando ele ao lado da economia popular. Eis o fundamento falacioso da narrativa bolsonarista— expresso pelo próprio presidente — quando diante do impacto assassino da Covid-19: o de que, independentemente das medidas restritivas decretadas pelos governadores, as mortes viriam, que as ações seriam, portanto, inócuas para a preservação de vidas, mas decisivas para agravar o flagelo da economia, o desemprego, a pobreza.
Aquele discurso de Bolsonaro — o do governante aflito sobretudo com a situação das famílias mais pobres — foi percebido como de genuína preocupação com a subsistência dos que não tinham gordura para permanecer em casa sem passar fome. Isso foi captado como compondo anova popularidade do presidente. E então, para fortalecer essa posição, vieram as medidas de auxílio econômico emergencial; com o que o Bolsonaro viu nascer — alicerçado na licença para abrir o cofre — o Bolsa Família do Jair.
Gostou. Tomará gosto por gastar. De modo que não me surpreenderá que, tendo surgido em caráter provisório, essa ajuda excepcional — recebida pelos beneficiados como uma ajuda de Bolsonaro — torne-se permanente, engolfando a antiga base do Bolsa Família e ampliando o corpo de assistência do Estado aos pobres.
É espantosa — um país à parte — a quantidade das milhões de pessoas que inexistiam formalmente e que de repente vão mapeadas pelo governo de turno. Desses milhões, quantos milhões poderão sernovos milhões de títulos de eleitor? Já pensou?
Nova base social é isso.
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