“Ele foi morto como um cachorro à luz do dia”, canta Dylan ao abrir a canção. “Era uma questão de tempo, e o tempo estava correto. Você tem dívidas a pagar, e nós viemos cobrar. Vamos matar você com ódio e nenhum respeito”.
O assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, marcou toda uma geração. Era como o fim precipitado de alguma coisa que nem bem havia começado. Um momento, descreve Dylan, em que o espírito de uma nação foi rasgado. Espírito que entrou em “longa decadência”.
Era o tempo da luta pelos direitos civis. Dos direitos dos negros, das mulheres. Da música como ímã para juntar gente interessada em mudar o mundo. Tudo isso está em Murder most foul, que o poeta incansável lançou inesperadamente nas redes sociais. Bem no momento em que o mundo procura achar forças para combater uma grande pandemia.
Kennedy ia além do America First. Ele foi uma espécie de símbolo de um tempo que estaria para nascer. Apesar do Vietnã, apesar da invasão da Baía dos Porcos. Mas tinha o charme de uma liderança cosmopolita. Alguém capaz de encantar o mundo.
O mesmo mundo que hoje assiste, quase impotente, à expansão de uma doença capaz de levar centenas de milhares de vidas em poucos meses. Tempo em que sobram preocupações e faltam lideranças capazes, ao menos, de inspirar ondas de confiança no planeta sobressaltado.
A liderança chinesa acredita haver feito o dever de casa. Conseguiu conter a expansão do coronavírus por meio de uma dura política de isolamento social e testagem em massa da população. Pode ter conquistado apoio interno com a vitória, ainda que parcial. Mas não inspira, nem pretende inspirar, o resto do mundo.
A Itália, país que até hoje sofreu as maiores perdas depois da chegada do vírus, pecou pela falta de rápida resposta. Da Prefeitura de Milão ao governo nacional, ninguém acreditou que a doença chegaria aonde chegou. O exemplo, ali, vem de baixo. De uma população isolada que canta nas janelas e celebra os seus médicos e enfermeiros.
As ruas de Milão e Roma estão desertas. E foi dali, na deserta praça de São Pedro, no Vaticano, que surgiu a mais candente resposta, até o momento, aos temores da humanidade nesse momento de incerteza. Sozinho, diante daquele enorme espaço público vazio, o Papa Francisco dirigiu ao mundo a benção Urbi et Orbi.
Ele falou para 1,3 bilhão de católicos. Mas, de certa forma, parecia estar se dirigindo ao mundo inteiro. Lembrou que a humanidade se calou diante de guerras e injustiças. Criticou a opção preferencial pelo lucro. “Não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”, disse Francisco.
O grave tom do pronunciamento de Francisco contrastou com a linguagem quase negacionista de líderes nacionais na Europa e em outras partes do mundo. Uma linguagem politicamente calculada, mas que tinha pouco de empatia e de conforto.
A mais notável exceção parece ter sido a da chanceler Angela Merkel, da Alemanha. Em rara emissão em rede nacional de televisão, ela explicou à população de seu país como o governo alemão reage ao que ela chamou de maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.
Merkel ressaltou a necessidade de atuação conjunta de governo e cidadãos na luta contra a pandemia. Elogiou os profissionais de saúde e lembrou à população que era necessário deter a velocidade de expansão do vírus, para não sobrecarregar os hospitais. E aqui ela se apresentou aos alemães mais humana do que nunca se havia apresentado.
“A Alemanha tem um excelente sistema de saúde, talvez um dos melhores do mundo, mas nossos hospitais ficariam sobrecarregados se tantos pacientes com infecções severas causadas pelo coronavírus fossem admitidos em tempo tão curto”, observou Merkel.
“Eles não são apenas números abstratos em uma estatística, mas sim um pai ou um avô, uma mãe ou uma avó, um companheiro. São Pessoas. E nós somos uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importa”, completou.
O discurso de Merkel, uma líder geralmente descrita como fria e distante, espalhou-se rapidamente pelas redes sociais em todo o mundo. Como um exemplo de transparência, sobriedade e empatia. Como exemplo de alguém em quem se poderia confiar.
As últimas semanas têm mostrado que não adiantou muito a tentativa de apresentar a pandemia como algo distante ou como manipulação da mídia internacional. O vírus cruzou fronteiras e desafiou governantes que duvidavam do alcance da pandemia.
O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que se alinhava na turma dos céticos, foi pessoalmente atingido pelo coronavírus. E seu governo adotou nova postura diante da pandemia. Johnson foi à televisão para dizer que os britânicos deveriam permanecer em casa e sair apenas para compras essenciais ou necessidades médicas.
A mudança chegou também à Casa Branca. No domingo, o presidente Donald Trump pediu aos americanos que fiquem em casa pelo menos até o fim de abril, para reduzir o ritmo de expansão da pandemia. Ele foi convencido por seus assessores de que até dois milhões de americanos poderiam morrer se mantivesse os planos iniciais de romper a política de isolamento social nos próximos dias.
“Nada seria pior do que declarar vitória antes de conseguir a vitória”, disse Trump, em raro momento de modéstia e conciliação.
As idas e vindas do presidente americano são típicas de uma época de inquietude e incerteza. A pandemia surpreendeu o mundo em um momento de pouca cooperação e muito confronto geopolítico. Um momento onde a importância demasiada ao nacional tem desviado para o caminho do provincianismo, onde florescem governantes de curta visão.
Poucos líderes de hoje se arriscariam, como fez Kennedy com seus erros e acertos há meio século, a apresentar ideias ao mundo. Dylan escolheu o tempo certo para lembrar o seu exemplo.
Marcos Magalhães
Nenhum comentário:
Postar um comentário